Jéssica Maria Ribeiro Fernandes, 31, vê seus dias passarem debaixo de uma marquise na calçada de um prédio localizado no bairro da Ribeira, zona Leste de Natal.
A moradora de rua não se lembra ao certo, mas está há mais de 13 anos vivendo nessa situação. Sem nenhum documento, ela não existe. Está à mercê do Estado brasileiro. Por isso mesmo, não recebe nenhum auxílio governamental. Ganhava um pouco de dinheiro ao se prostituir, mas diz que logo gastava o dinheiro para comprar drogas.
Fernandes não sabe, mas ela integra o grupo de 42% de potiguares que vivem na linha da pobreza. Essa população, segundo o Mapa da Nova Pobreza, publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FVG), corresponde às pessoas que vivem com até R$ 497 por mês. Isso significa cerca de R$ 1,49 milhão de pessoas. Os dados divergem dos números oficiais da Secretaria de Assistência Social, publicados no dia 26 de junho pela TRIBUNA, que mostram 1,15 milhões de pessoas, entre pobres e extremamente pobres, no Estado.
Para Jéssica, os ganhos mensais são mais próximos do 0. Ao lado de um colchão desgastado, ela mantém uma pequena prateleira, onde guarda maquiagem, remédios, calçados, boneca e uma Bíblia. No outro lado, estende roupas e travesseiro sobre um corrimão, para pegar sol. O chão também está limpo, após ser recém-varrida com uma vassoura pela mulher negra de rosto marcado por cicatrizes.
“Nós precisamos muito de ajuda. Muita gente tem preconceito sobre nós, não aceitam falar com a gente pensando que somos sujos. Mas vocês chegaram na hora que eu estava arrumando [o local], fui tomar meu banho”, comenta. Jéssica tem cinco filhos, mas nenhum vive com ela. Alguns estão com outros familiares, enquanto uma criança está sob a guarda da Justiça. Para manter a higiene, toma banho de mangueira por trás de uma árvore. Comida ela às vezes faz à lenha, mas afirma que não precisa, porque sempre recebe doação. “A gente não passa fome, graças a Deus”.
A pesquisa da FGV mostra que a pobreza no Rio Grande do Norte — e no Brasil — nunca esteve tão em alta. Nacionalmente, 29,62% da população do país é considerada pobre. De acordo com a publicação, o país tem “quase um Portugal de novos pobres surgidos ao longo da pandemia”. No Estado e no Brasil, os números são os maiores desde o início da série histórica da Fundação, em 2012. Naquele ano, o RN possuía 40,7% da população vivendo com menos de R$ 500 por mês. O menor registro de pobreza foi em 2015, quando o contingente nesta situação correspondia a 35,1%.
Segundo a Secretaria de Estado do Trabalho (Sethas), Iris Oliveira, “o crescimento da pobreza é uma constatação nacional”, mas o Estado tem buscado projetos para diminuir o problema. Hoje, segundo Oliveira, são 30 mil famílias em lista de espera para receber o Auxílio Brasil.
“Nós temos a queda do poder de compra do salário mínimo, uma inflação em decorrência dessa dolarização dos preços dos combustíveis, dentre outras razões. Então tudo isso vai jogando na pobreza um contingente muito grande de pessoas que antes conseguiam obter renda pelo trabalho, pela estabilidade dos preços, pelo que se tinha de preservação do poder de compras do salário mínimo mesmo que minimamente”, comenta.
De acordo com a titular da Sethas, o Governo estadual pretende recuperar as atividades econômicas, fator considerado importante para diminuir o número de necessitados. “Nós temos hoje um esforço do Estado de recuperação da atividade econômica, em busca de novos empreendimentos, de captação de empresas que possam atuar no nosso estado e gerar emprego”, afirma Oliveira.
Dentre as medidas, investimentos nas áreas de energia eólica, economia solidária e agricultura familiar. Para a segurança alimentar, está prevista a “manutenção na ordem de R$ 66 milhões na área dos Restaurantes Populares, e mais de R$ 43 milhões no Programa do Leite”. Fora isso, há atenção na assistência social. “Nós estamos cofinanciando 52 municípios e iniciando serviços regionalizados no âmbito dos Centros de Referência de Assistência Social (CREAS)”, diz a secretária. “Tudo isso implica num investimento na área da assistência social, atuando no apoio contra a violação de direitos ao idoso, à criança e adolescente, às mulheres em situação de violência”, afirma.
Segundo Anderson Santos, professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenador do grupo de pesquisa “Desigualdade, Desenvolvimento e Democracia”, essa também é parte da população mais afetada pela crise socioeconômica. “Os que sofrem mais são os pretos, as pessoas que vivem de ‘bico’, na informalidade, as pessoas que têm baixa escolaridade, as mulheres. São as chamadas camadas vulneráveis, que estão expostas a maiores risco”, opina.
Quebra-cabeça
Maria Auxiliadora Siqueira tem 52 anos e vive hoje em uma ocupação urbana nas Rocas. Num mesmo barraco, vivem ela, a filha, o genro e os três netos. Destes, apenas a filha trabalha. A moça é faxineira e trabalha de maneira informal. Para Siqueira, o dia a dia é um “empurra daqui, empurra daqui” para conseguir sobreviver, mas comemora o fato de não pagar aluguel atualmente. Antes moradora de Mãe Luiza, a mulher gastava entre R$ 300 e R$ 350 por mês com este custo.
“Só de não pagar aluguel, você já fica com o dinheiro da comida. Quase todo mundo que está aqui hoje fica contente por não pagar aluguel, e na esperança de que o Governo olhe pra gente e nos dê a luz de uma chave, uma casa”, espera. Segundo ela, com os cerca de R$ 500 reais que a família ganha atualmente não é possível pagar tudo, “mas a pessoa vai se moldando, até porque somos frutos do meio em que vivemos”, diz ela. “Nós somos adaptáveis”.
O estudo da FGV foi elaborado a partir dos dados da (PNAD) Contínua.
No Agreste potiguar, 57% vivem na pobreza
Em 2021, 57,57% do Agreste potiguar vivia em situação de pobreza, com até R$ 497,00 reais por mês. É a região mais pobre do Estado. Em Natal, são apenas 22,35 de pessoas consideradas pobres. Os dados são do Mapa da Nova Pobreza, publicado nesta semana pela Fundação Getúlio Vargas (FVG).
Em segundo lugar, depois do Agreste, está a região Oeste, que tem Mossoró como principal cidade. Nesta área, 52,63% dos moradores vivem na linha da pobreza. A região Central tem cerca de 46%, e o entorno da região metropolitana possui 42,66%. Natal, portanto, é a região menos pobre do Rio Grande do Norte.
Para Anderson Santos, professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenador do grupo de pesquisa “Desigualdade, Desenvolvimento e Democracia”, o motivo principal é a falta de trabalho. “A causa primordial é o desemprego, mas também seguido pelo reajuste tímido do salário mínimo. Isso vai comprimindo o poder de compra dos trabalhadores, [eles] vão ficando mais dependentes do trabalho informal”, afirma.
De acordo com o professor, a informalidade cresce a partir de um contexto de aumento da insegurança econômica. “Você tem os preços subindo, juros subindo, uma situação sanitária que não se resolve, e que teve um impacto econômico muito forte”. A opinião é compartilhada pelo economista Cláudio Barbosa. “Infelizmente, nesses últimos 8 a 10 anos, o Brasil tem passado por um processo de pobreza extrema, não tenho a menor dúvida. E o que nós vemos é nenhuma medida governamental para minimizar esses problemas, não se vê nem a nível municipal, estadual nem tampouco federal”, critica.