Em meio à seca extrema no igarapé Paraná do Itaúba, em Maraã (AM), uma embarcação carregada de tambaqui – peixe que compõe a base da alimentação na região – trafega lentamente, desviando de galhos secos que dominam as margens.
O trajeto é subitamente interrompido quando o barco de madeira encalha no no fundo do rio. Sob o risco de perder a carga, a tripulação não vê outra alternativa, a não ser pular na água a escavar o fundo do igarapé, para poder então seguir viagem.
Situações dramáticas como essa se repetem no Amazonas, onde uma estiagem generalizada baixa drasticamente o nível dos rios e ameaça comprometer a pesca e a agricultura sustentáveis na maior bacia hidrográfica do mundo, a do rio Amazonas.
O fenômeno, que pode durar até o início de 2023, atinge centenas de comunidades, que perderam o acesso a lagos onde peixes como o pirarucu e o tambaqui são manejados de forma sustentável, com plano de manejo, sem esgotar os recursos naturais.
Na comunidade Monte das Oliveiras, no município de Fonte Boa (AM), 16 famílias estão praticamente ilhadas. O morador Tomé Coelho dos Santos afirmou que fechou as portas de seu minimercado na comunidade, pois já não é mais possível trazer produtos da área urbana.
“Está difícil o acesso para a cidade. As pessoas da comunidade estão sofrendo consequências devido a que não tem como comprar alimentação agora. Quando vai uma pessoa, a canoa é pequena. Agora só dá para agora andar de canoa aqui”, relata o morador da comunidade Monte das Oliveiras.
Milcy Cordeiro de Carvalho, 53 anos, disse que nunca viveu situação parecida. Ela preside um acordo de pesca sustentável no município de Maraã (AM) que sustenta 135 famílias sem provocar desequilíbrio ambiental. O pirarucu, principal fonte de renda das comunidades, está inacessível.
“Está prejudicando porque tudo está muito seco. Fechou a área de transporte onde fica o pirarucu que a gente vai capturar. Não tem como retirar ele agora no momento. Agora é esperar a água subir”, diz a líder comunitária.
Estiagem provoca mortes de peixes e deslizamentos
Os relatos de isolamento e desabastecimento de alimentos se somam às imagens catastróficas produzidas nos últimos dias. Uma comunidade ribeirinha a 170 quilômetros de Manaus foi engolida por uma cratera, depois que um barranco desabou. Duas pessoas morreram e outras 300 foram afetadas diretamente.
Também perto da capital amazonense, milhares de peixes apareceram mortos na superfície do Lago do Piranha, e moradores relataram que a água ficou imprópria para consumo. No lago Tefé, a 500 km de Manaus, já passa de 120 o número de botos encontrados mortos, depois que a água chegou aos 40 graus, um recorde de temperatura.
“A primeira consequência é a escassez de produtos”, explica o pesquisador do Instituto Mamirauá em Tefé (AM), Ayan Fleischmann. “Porque algumas dessas grandes embarcações não conseguem mais navegar no Solimões. Além da escassez, isso causa a elevação do preço de vários bens de consumo”.
O rio Solimões, que é a parte superior do rio Amazonas – o maior rio do mundo – está secando. Grandes embarcações, que levam alimentos da capital para o interior, já não conseguem navegar.
O município de Tefé (AM), um grande centro urbano em uma das áreas mais preservadas da Amazônia, atrai ribeirinhos e indígenas em busca de serviços de saúde, bancários e de educação.
“A população não está conseguindo acessar esses serviços. As crianças já não estão indo para a aula há tanto tempo, não estamos conseguindo comprar alimentação como queríamos”, descreve o pesquisador do Instituto Mamirauá.
Seca está só no começo
Especialistas afirmam que a seca e o calor intensos são causados pela combinação de dois fatores: o El Niño, um fenômeno climático natural que aquece as águas do oceano Pacífico, e o aquecimento global, provocado pela ação humana.
“Tem uma probabilidade altíssima desse El Niño continuar nos próximos meses e até para o próximo ano. Isso indica que agora ele está ganhando força e que os efeitos que normalmente acontecem quando estamos vivendo o El Niño podem piorar. Então a tendência é que a seca piore na Amazônia”, diz Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
“No Amazonas, a maior seca já registrada foi em 2010, quando havia a mesma configuração climática. O Atlântico tropical norte muito quente e parte do Pacífico e do Atlântico muito aquecidos estão gerando essa catástrofe”, explica Ayan Fleischmann, do Instituto Mamirauá.
O governo do Amazonas decretou estado de emergência em 55 dos 62 municípios no estado. A estimativa é que 500 mil pessoas sejam afetadas nos próximos meses.
“O correto na gestão de desastres é promover a cultura da prevenção, a cultura do risco, a educação das pessoas para o risco e pensar em como nos adaptaremos a essas novas situações que estamos vivendo”, diz Ayan Fleischmann, do Instituto Mamirauá.
“Portanto, essa falta de prevenção ou de políticas de adaptação às mudanças climáticas obviamente faz muita falta. Não há uma política bem estabelecida no Brasil, nem a nível federal, nem estadual, nem municipal”, complementa o pesquisador.