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UFRN diploma post mortem estudantes assassinados pela ditadura militar

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Os sons de tiros e os relatos de enfrentamentos policiais não apenas continuam ecoando no imaginário brasileiro, mas seguem acontecendo, atualizando cotidianamente as marcas da repressão. Essa realidade reverbera a narrativa oficial construída pelos agentes da violência desde o golpe civil-militar de 1964. A história, no entanto, guarda outras versões — aquelas que não foram contadas, mas apagadas ou silenciadas pela ausência de uma Justiça de Transição efetiva. Hoje, enquanto a sociedade civil organizada, especialmente vítimas e familiares dos mortos e desaparecidos políticos, pressionam pelo reconhecimento das violências do passado, as universidades, alvos da repressão, tornam-se palcos de um esforço simbólico para reescrever a história. É nesse contexto que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) se prepara para diplomar post mortem dois estudantes potiguares brutalmente assassinados pela ditadura: Emmanuel Bezerra e José Silton Pinheiro.

No próximo dia 6 de dezembro, a UFRN realiza uma cerimônia no auditório da reitoria, às 15h30, que, embora tardia, carrega o peso do reconhecimento histórico. Emmanuel Bezerra, estudante de Ciências Sociais, e José Silton Pinheiro, aluno de Pedagogia, tiveram suas trajetórias interrompidas pelo aparato repressivo do Estado brasileiro. Emmanuel, nascido em Caiçara do Norte, destacou-se como líder estudantil e militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR), sendo preso e torturado até sua morte, em 1973. José Silton, natural de São José de Mipibu, foi perseguido pelo regime e morreu em 1972, aos 23 anos, em uma operação do DOI-CODI no Rio de Janeiro. O corpo de Emmanuel foi sepultado no dia 14 de julho de 1992 em na sua cidade, Caiçara do Norte. José Silton Pinheiro permanece sem seus restos mortais localizados e identificados sendo, portanto, desaparecido.

Primo de Emmanuel Bezerra, Jessé Andrade Alexandria ressalta que “a importância da diplomação de Emmanuel Bezerra pela UFRN não é apenas uma reparação tardia à memória do estudante potiguar morto pelo Estado terrorista durante a ditadura de 1964, é também (ou deveria ser) um ato político capaz de mostrar à sociedade brasileira que a luta de Emmanuel não foi em vão, pois é memória viva, exemplo de irresignação diante da injustiça social, da perseguição política, vale dizer, combate por uma sociedade livre justa e solidária. O reconhecimento por sua militância deve ser também a luta por verdade, memória e justiça, a constante vigília contra a ameaça fascista“.

A diplomação, reivindicada por estudantes, servidores e ativistas, representa mais que um ato simbólico: é uma tentativa de resgatar as histórias de vidas interrompidas pela violência política e de inserir essas narrativas no espaço de memória coletiva da universidade. Segundo o Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça do RN (CEV-RN), “esta é uma ação fundamental no avanço que precisamos promover em direção à plena realização da Justiça de Transição. A diplomação de Emmanuel Bezerra e José Silton Pinheiro, em um ato de reparação histórica, reforça a importância de manter viva a memória coletiva e garantir que as lutas por memória, verdade e justiça sejam reconhecidas”.

As Universidades na mira da ditadura

Durante o regime militar, as universidades foram alvo de intensa vigilância e repressão. No caso da UFRN, isso incluiu a atuação da Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI), que monitorava alunos e professores considerados subversivos. Diversos membros da comunidade acadêmica foram presos, torturados ou tiveram suas carreiras interrompidas. Emmanuel e José Silton são exemplos emblemáticos dessa perseguição.

O trabalho da Comissão da Verdade da UFRN, instaurada em 2012, lançou luz sobre esses episódios, mapeando violações de direitos humanos cometidas no âmbito universitário. O relatório final da comissão, apresentado em 2015, apontou em 489 página para a necessidade de preservar a memória institucional por meio de iniciativas como a criação de um memorial da resistência, a colocação de placas em locais de repressão e a revogação de resoluções autoritárias emitidas durante o regime. O esforço envolveu 27 sessões ordinárias, três audiências públicas e 51 depoimentos, além de recorrer a publicações de Mário Moacir Porto e Otto de Brito Guerra (Edufrn) e consulta a 20 DVD’s do Programa Memória Viva, produzido e veiculado pela TV Universitária.

Esse é um tema de grande relevância para a nossa universidade, que já teve sua própria Comissão da Verdade, a qual produziu um relatório riquíssimo. Estamos empenhados em cumprir as recomendações feitas por essa comissão”, destacou o reitor da UFRN, José Daniel Diniz.

Juan Almeida, que integrou o trabalho da Comissão da Verdade da UFRN, diz que, quando a Comissão finalizou seus trabalhos, foi protocolado no gabinete da Reitoria um processo para implementação de diferentes recomendações.

“Há um conjunto de recomendações de nomeação de espaços e retirada das homenagens ao Presidente Castelo Branco e Emílio Garrastazu Médici, e vários outros: incentivo às pesquisas, a publicação de edital, construção de lugares de memória aqui no campus universitário. Então eu acho que esse processo pode se agregar hoje, mas além da dimensão individual das homenagens a Emmanuel e José Silton, nós estamos reparando a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, porque essa coletividade, essa comunidade, esse organismo aqui foi afetado”, reflete Juan Almeida.

Recomendações e reflexões para o futuro

Entre as principais recomendações da comissão, destaca-se a criação de um espaço permanente para a preservação da memória, como o uso do prédio histórico da antiga Faculdade de Direito para abrigar um acervo sobre a ditadura. Além disso, foi sugerida a aposição de placas simbólicas em locais como o subsolo da Biblioteca Central Zila Mamede, onde funcionou a AESI.

Essas propostas refletem a importância de institucionalizar a memória e reconhecer publicamente as violações cometidas, mas também evidenciam o quanto ainda falta avançar. A diplomação de Emmanuel e José Silton é um passo significativo, mas isolado, em um país onde o passado ditatorial ainda se manifesta nas práticas de violência e exclusão que marcam o presente.

Para Ana Beatriz de Sá, neta do guerrilheiro potiguar Glênio Sá e militante do coletivo Nacional de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, “no ano em que se completam 60 anos do golpe militar fascista no nosso país, exigir a efetivação da memória, da verdade e da justiça para os verdadeiros heróis do nosso povo nunca foi tão urgente. Deve estar na ordem do dia. Pra além de um ato simbólico, isso representa que a memória sobre a história do nosso país não pode se perder”.

Memória e Justiça: um debate urgente

A luta por Memória, Verdade e Justiça no Brasil segue sendo conduzida, sobretudo, pelos familiares de mortos e desaparecidos e por organizações da sociedade civil. A resistência em enfrentar os crimes da ditadura de forma ampla e efetiva deixou marcas profundas: a manutenção de estruturas repressivas, a continuidade das práticas de tortura e o desprezo pela vida de populações marginalizadas.

No espaço acadêmico, iniciativas como a da UFRN apontam para a possibilidade de um futuro onde a memória não seja apenas um exercício do passado, mas uma ferramenta ativa na construção de uma sociedade mais justa. Emmanuel Bezerra e José Silton Pinheiro não terão suas vidas de volta, mas suas histórias, finalmente reconhecidas, poderão iluminar a luta contra as violações que persistem até hoje.

RECOMENDAÇÕES GERAIS DO RELATÓRIO DA COMISSÃO DA VERDADE DA UFRN

Primeira: Utilização do prédio histórico onde funcionou a Faculdade de Direito da UFRN para abrigar o acervo documental e audiovisual sobre o período da ditadura civil-militar e o material produzido pela Comissão da Verdade da UFRN, em forma de memorial da resistência universitária. 412 Comissão da Verdade da UFRN

Segunda: Fazer o reconhecimento simbólico e público da violação aos direitos humanos contra membros da UFRN; e homenagear, com as cautelas estatutárias, os professores e alunos assassinados e, de alguma forma, vilipendiados pelo regime discricionário, consoante já registrados neste Relatório com a colocação dos seus nomes em memoriais e logradouros das unidades pertencentes a UFRN e espaços da administração universitária em cerimônia oficial; criação de obras ou painel artístico em que se registre os reflexos do regime de exceção nas atividades acadêmicas e administrativas, mediante abertura de Concurso Público destinado aos artistas plásticos da própria universidade.

Terceira: Fazer aposição de placa simbólica no local onde funcionou a extinta Assessoria Especial de Segurança e Informações da UFRN (Subsolo da Biblioteca Central Zila Mamede), com alusão à sua função repressiva.

Quarta: Recomendar que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a título simbólico e com as cautelas estatutárias, proponha ao Conselho Universitário a revogação de todas as Resoluções autoritárias dele emanadas, durante o período da ditadura, que tiveram por objeto o tolhimento das liberdades constitucionais de manifestação, pensamento e liberdades didático-científica, patrimonial, financeira e administrativa.

Quinta: Providencie um acondicionamento ideal para o acervo de documentos do Arquivo Geral da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, notadamente os que dizem respeito à memória institucional e administrativa, na parte que toca às antigas Faculdades, Escolas e Institutos.

Sexta: Que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte incentive a publicação de trabalhos sobre o período da Ditadura Militar e os seus reflexos no Rio Grande do Norte e na UFRN, como igualmente criando bases de pesquisa sobre esse tema.

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