Permitir construções em um terreno que sofre erosão por avanço do mar, contrariando toda a legislação que protege as áreas costeiras, parece não ser a decisão mais inteligente, mas é o que a maioria dos vereadores de Natal podem fazer na próxima quinta (5), quando o Projeto de Lei 302/2024 (PL 302/2024), que trata do uso e ocupação das Áreas Especiais de Interesse Turístico e Paisagístico (AEITPs), entrar em votação.
A Procuradora do Estado, Marjorie Madruga, explica que o PL traz fragilidade jurídica para quem deseja investir em áreas como a Via Costeira, porque o Projeto de Lei apresentando pelo prefeito Álvaro Dias (Republicanos) contraria leis maiores, de âmbito nacional.
“Apesar da competência município para legislar em interesse local, ela não é ampla, geral e irrestrita, deve observar a Constituição Federal, que estabelece normativas próprias. Estado e município têm que se submeter às leis hierarquicamente superiores, como a Constituição e o Plano de Gerenciamento Costeiro. Para ser válida, ela tem que se harmonizar com a ordem jurídica nacional e isso não acontece no caso do PL 302/2024”, antecipa Marjorie Madruga.
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Vereadores aprovam projeto da Prefeitura que libera construções na Via Costeira
De acordo com a Constituição Federal, a ocupação de áreas costeiras deve ocorrer, desde que preserve o meio ambiente. Além disso dentro da zona costeira há outras áreas protegidas que são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs), como mangues, dunas e falésias, que também não estão sendo respeitadas no caso do projeto encaminhado pelo prefeito de Natal para votação na Câmara Municipal do Natal.
O Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei 7661/88) e o Decreto nº 5.300/2004 dizem que a ocupação dessas áreas tem que considerar a qualidade de vida da população e a proteção do patrimônio natural e cultural. A prioridade é a proteção e não é isso que vemos no PL. Também temos a lei estadual nº 6.950/96, de autoria da atual governadora Fátima Bezerra de quando foi deputada, que reforça o que diz o Plano Nacional, reafirmando que a zona costeira deve visar a qualidade de vida e proteção de ecossistemas costeiros.
O Zoneamento Oriental Ecológico e Econômico Lei 7871/2000 considera a zona costeira como de proteção e de restrição de uso. As falésias devem ter 100 metros de distância sob proteção, são terrenos que não consideram construções, também é obrigatório manter um espaço de 33 metros de faixa de areia e estabelece diretrizes que devem ser observadas pelo Plano Diretor, como a conservação de áreas de interesse público e patrimônio paisagístico natural, além de estabelecer uma faixa costeira de 500 metros terrestres a partir da linha da maré máxima em direção ao interior de continente”, nenhuma dessas exigências estão contempladas no PL 302/2024, que já foi aprovado em 1ª discussão na Câmara Municipal na última semana.
“O Plano Diretor de Natal ou qualquer outra lei precisa considerar esse arcabouço que é superior a ela. Além disso, PL n observa o próprio PDN (Plano Diretor de Natal), que diz no artigo 25, que as áreas definidas como AEITPs visam proteger o valor cênico paisagístico, garantira a qualidade de vida da população, acessibilidade, equilíbrio climático da cidade e fortalecer a atividade turística. Isso não está sendo respeitado, o PL compromete a paisagem e qualidade de vida, porque rouba a paisagem, que é um bem da sociedade, além de aumentar a temperatura num momento de emergência climática”, critica a Procuradora Marjorie Madruga.
Os vereadores da bancada do prefeito justificam que a votação do projeto é necessária para regulamentar as AEITPS, o que é exigido pelo Plano Diretor da cidade. Porém, o que a bancada de oposição da Câmara, promotores, procuradores, além de pesquisadores e ambientalistas revelam, é que a regulamentação das AEITPs está sendo usada para alterar o próprio PDN.
Pelo PL enviado pela Prefeitura de Natal, serão permitidas construções na Via Costeira de Natal com até 21 metros e altura, em alguns pontos, quando o limite anterior era 7,5 metros.
“Quando tivermos um paredão de Ponta Negra à Redinha, imagine quanto a temperatura de Natal vai subir. Já temos estudos que mostram que Petrópolis já é uma ilha de calor, apesar de ser um dos bairros mais arborizados de Natal. O PL amplifica gabaritos da zona costeira, passa por cima do PDN, não considera área especial costeira e estuarina, criada pelo Plano Diretor de 2022, que diz que para haver a ocupação dessa área é preciso ter um Plano de Gestão Integrado da Orla, que deve ser aprovado por um Comitê Mas, veja que esse PL sequer dialoga com as áreas especiais de interesse social, como Mãe Luíza, Brasília Teimosa e Ponta Negra, não houve uma gestão democrática, as comunidades costeiras não foram consultadas, o que é uma exigência da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”, ressalta a Procuradora do Estado.
Outra preocupação com a liberação das construções em áreas costeiras, é com os desdobramentos dos eventos extremos.
“O Projeto de Lei desconsidera a questão climática. O calor que vai aumentar e há riscos de desastres naturais pela erosão. A Via Costeira tem erosão mais intensa do que em Ponta Negra, onde está sendo feita a engorda. Não se conhece o nível de retração das falésias, por exemplo, não se sabe o que elas podem suportar. O PL também não considera a elevação do nível do mar. Na hora que você ocupa um lugar assim, vulnerabiliza cidade como um todo. Na dúvida, não se pode arriscar, não se sabe o que virá de eventos climáticos extremos. O mundo inteiro atua para desocupar ou não ocupar as zonas costeiras, há países pagando para desocupar, enquanto aqui a gente vai na contramão do mundo, autorizando ocupação de área que já está condenada”, compara Marjorie Madruga.
A procuradora do Estado ainda aponta que o PL também fere o Estatuto da Cidade.
“O PL teria que ser democrático, mas não foi debatido, não passou nem pelo Complan (Conselho de Planejamento Urbano e Meio Ambiente de Natal). A Via Costeira é uma zona de amortecimento do Parque das Dunas. Qual estudo feito para saber quanto isso vai afetar aquela área? Isso é afetar a qualidade de vida da cidade e até nosso aquífero, que passa ali por baixo. A questão de termos áreas verdes é fundamental à saúde da população. Um dos nossos pesquisadores mais respeitados no país diz que mais preocupante do que as enchentes, são as ondas de calor que estão acontecendo nas cidades, estamos eliminando esse clima agradável que Natal tem, isso é burrice, irresponsável”, é taxativa a Procuradora.
Quem se beneficia?
Na avaliação da Procuradora do Estado, apenas uma nanopartícula da sociedade se beneficiará com a medida.
“Apenas a população muito rica para conseguir morar ali e que não tem consciência do risco que isso representa, em detrimento da população da cidade inteira. Se esse PL passar, Natal vai virar uma cidade murada. Do ponto de vista turístico, isso também é um tiro no pé. As pessoas vêm para Natal pela paisagem que ela oferece”, ressalta Marjorie Madruga, que lembra que o tanto o prefeito de Natal quanto os vereadores que votaram a favor do PL estão descumprindo recomendações do Ministério Público Federal e Estadual, que recomendaram que a Via Costeira seja uma Zona de Amortecimento e não sejam permitidas construções no local.
“Essa solicitação dos Ministérios Públicos sequer foi respondida! Essa postura revela um autoritarismo que pode não estar explícito para algumas pessoas, mas está implícito em todos os atos, como quando se encaminha um PL sem discutir com a sociedade e com os conselhos do próprio município. A Câmara Municipal seguiu o mesmo passo. Poderia ter feito audiência pública, devolvido o PL para passar pelos Conselhos… mas sequer respondeu. Estão desconsiderando uma instituição da República. É uma postura grave, mas não estranha, depois do que foi feito na engorda de Ponta Negra, com invasão ao Idema, agressão a servidor e mandado de segurança para impedir de ser fiscalizado… Estamos vendo o autoritarismo tomando de conta do poder público e precisa ser chamada atenção para isso“, alerta Marjorie Madruga.
A votação definita do Projeto de Lei 302/2024 está programada para essa quinta (5), na Câmara Municipal do Natal.