*Por Érica Zingano, poeta cearense, autora de livros de poesia, faz doutorado na UFC
Ponta Negra, foi com esse título que Tânia Lima escolheu batizar seu sétimo livro de poesia, este
que lemos aqui, numa tela iluminada, de algum aparato tecnológico, conectado na internet, em
pleno séc. 21: um livro impresso, mas feito com muita artesania pelo selo editorial da Sol Negro,
com projeto gráfico assinado por Márcio Simões, o livro vem composto de poemas tão concisos
quanto potentes, indo de um lirismo refinadíssimo, nos surpreendendo com imagens muito únicas,
originais, até um humor sagaz no poema cilada sem papas na língua, porque o poema-piada, há
muito sabemos, é uma grande aliada das contra-narrativas anticoloniais. Os poemas são limados,
com cheiro de pedaços de histórias, de fragmentos de intimidades, com diferentes intensidades e
nuances, e vão nos contando outras histórias, nos conectando com as memórias que foram ouvidas
do vento, por exemplo, “sento-me livre para ouvir/ o vento bordando o mar”, mas também que
foram trazidas pelo mar, pela ancestralidade do ar, pela memória da memória do mar, construídas na
relação com a metáfora do mar… Nos poemas, as vozes se confundem um pouco, se misturam, é a
voz da poeta, que relembra sua própria biografia, “Venho de um mar insular”, mas também a voz
do mar, nos contando que é o mar que vê, logo no primeiro poema do livro, “primeira vez/ que o
mar/ vê a terra/ amor avista”, nos abrindo o livro na toada do amor, e este é um livro para Iemanjá,
aparecendo também como Odoyá.
Este título repete, sim, um lugar: Ponta Negra é o nome de uma praia, na cidade de Natal, no Rio
Grande do Norte, no nordeste do Brasil, e também o nome de uma praia no coração de Manaus. O
livro transita entre uma diversidade de mares, nomeia a tessitura do mar sagrado pelo que há de
segredo no mistério. A Vila de Ponta Negra, bairro onde a Tânia já viveu, tendo se mudado para
Natal há quinze anos, para trabalhar; ao que parece, o nome dessa praia vem da enorme quantidade
de pedras escuras que existem por lá, mas eu não me lembro dessas pedras escuras, que dão nome
ao lugar e que o Wikipédia nos lembra que existem, fazendo parecer que, às vezes, a linguagem até
pode ter algum por quê, uma razão de ser, num gesto de nomeação que se dá por assimilação, por
toponímia… Quem é de lá ou conhece o lugar, logo lê a paisagem da cidade, atravessando a
brochura do livro, mas, para quem não é, se não tiver nenhuma vivência de lá, pode demorar um
pouco mais para lembrar de outros lugares, por associação, e começar a fazer imagem, projetar
em cima da paisagem do livro, a passagem pelo lugar.
Assim que eu vi o título, na capa do livro, eu me lembrei de uma série de fotografias da minha
família de férias lá, naquela praia, Ponta Negra… Eu nem lembrava que tinha estado lá, não fossem
aquelas fotografias, que eu encontrei, por acaso, há pouco tempo, e que me lembravam de mim, me
garantindo que realmente nós estivemos lá, que aqueles ali, meio manchados pelo tempo, mas
banhados pelo mar, éramos nós, sim, disfarçados de turistas dentro do mar, trabalhando o luto,
dissolvendo todas as dores dentro mar, sob o sol a pino… Com as fotografias na cabeça, tendo me
lembrar do lugar, voltar para aquele mar, mas, para ler o livro da Tânia, será que isso que eu vivi ali
isso importa? Aquelas fotografias só me lembram que o luto é um trabalho dolorido demais, e que a
gente recalca, esconde da gente mesmo, mesmo os momentos bons, a memória engole muito,
engole tudo, o mar leva… E as coisas voltam de outro jeito.
Os poemas da Tânia vêm de lá, daquela praia, daquele bairro, do tempo em que ela viveu ali, mas
ela os escreve a partir de agora, do nosso presente histórico, urgente, urgentíssimo, recuperando e
remexendo na história, na sua própria história, pessoal, relembrando, “Meu pai me deu o mar de
presente”, e este livro é, na verdade, um livro-lugar que multiplica o lugar local, regional, no
nordeste do Brasil, dando lugar e abrindo passagem para outros lugares entrarem, acolhendo outros
lugares da diáspora africana, indo “do Havaí ao Haiti”, e também “com folhas de guiné”,
dialogando com outros mares da história, “Mar Negro”, Mar Vermelho (que virou “mar Rouge”,
quase rugindo) e o “mar mediterrâneo”, ou mesmo o “Oceano Pacífico”, como aparecem nos
poemas, refazendo uma geografia do norte-nordeste do Brasil, juntando rio com mar, aproximando
lugares distantes, numa escrita-errância aberta, como o próprio mar, vivo, voraz, vidente, e escrito com o feminino.
Um mar feminista pode ser entendido como um mar que reivindica um outro símbolo fálico, em nada falocêntrico, para fecundar o imaginário, como a imagem da concha, por exemplo, uma imagem muito antiga que aparece em um dos poemas, “A natureza em forma de concha/ é fálica”, coincidindo com o que Ursula K. Le Guin nos diz, em seu ensaio “A teoria da bolsa de ficção”, dos anos oitenta, e só recentemente traduzindo para o português: “Uma folha uma cabaça uma concha uma rede uma mochila uma sacola uma cesta uma garrafa um pote uma caixa um frasco. Um container. Um recipiente.”, todas essas são imagens que conversam entre si, em continguidade, e que Ursula elenca em seu texto, dialogando com Elizabeth Fisher, ao pensar sobre os instrumentos que estão ligados à História da Humanidade, tentando desconstruir os instrumentos falocêntricos do Herói , que foram usados para validar uma história masculina, já que, para elas, “o primeiro aparato cultural foi provavelmente um recipiente…”, em se tratando de humanes coletores.
Esse mar da poeta também remexe a diásporas em questões históricas muito profundas, como a problemática da raça, ligada à formação identitária do Brasil e à invenção do racismo, mas, em seu livro, essas questões também aparecem trabalhadas envolvendo pautas mais amplas, como as de classe e de gênero, numa tentativa de desconstruir e destituir o patriarcado; então, ao decidir escrever abrindo o lugar, não foi para repetir os clichês da história, como reafirmar o cartão-postal da cidade ou falar sobre o bairro da antiga Vila dos Pescadores em seus 391 anos etc., mas para perspectivar e tensionar questões que estão subentendidas na paisagem, disputando espaço e visibilidade, disputando narrativas, foi para inscrever outros pontos de vistas e outras corpografias, jogando com noções geográficas e reinscrevendo a margem da cidade na paisagem: “O pôr do sol / pertence / à Zona Norte”.
Esse poema, “O pôr do sol / pertence / à Zona Norte”, poderia estar pixado em algum muro da zona nobre da cidade, porque o poema vem, sim, reivindicar um território, funcionando como um atestado de pertencimento, inscrito na paisagem, com direito a aparecer na fotografia, já que também faz parte do território, e é forte ler esse poema assim, disposto sobre a areia, quando há todo um mito em torno do Padre Anchieta ter escrito um longo poema em latim para Maria nas areias da Praia de Iperoig (antigo nome de Ubatuba), Maria que tem mar dentro e que aparece no livro como “Lei Maria da Penha”;
_Desde o início, por mais que Ponta Negra nos evoque algo noturno, sensação reforçada, inclusive, por essa imagem do sol se pondo, anoitecendo, há uma fotografia extremamente solar que percorre todas as páginas do livro e sobre a qual os poemas se derramam em dança, mudando de lugar, de uma página a outra, ora no mar, ora na areia, como se se tratasse de um jogo de 7 erros, imprimindo uma diferença sutil de uma página a outra – eu mesma não sei se essa fotografia é dessa praia, Ponta Negra, ou de uma outra praia qualquer, genérica, sem ligações afetivas com a Tânia, já que achada no Google, e disponibilizada para ser usada, livre de direitos autorias, sobre ela, acidentalmente, o cursor do meu mouse imprime outro poema “grátis Foto profissional grátis de água, ao ar livre,/ areia Foto profissional”, como se fosse um app que pudesse descrever a paisagem, a seu modo, de um modo programado, mas o que mais me impressiona na fotografia, por ser um ponto de vista impossível para o olho humano que contempla o mar da praia, é a visão de drone, que disposta assim, perspectivada, embaralha o mar como se fosse céu, caindo sobre a terra, onde a ponta negra, não é a ponta de um iceberg, é, na verdade, tão grande quanto o maior continente do planeta Terra.