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A legitimidade das mobilizações populares e os ‘inocentes do Leblon’

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Mantidas as desigualdades e descumprida a Constituição, os movimentos sociais estão legitimados política e juridicamente

“As pessoas se mobilizam por quê? Uma ocupação como essa, as pessoas não passam por todo esse processo de sofrimento porque acham bonito; ou porque alguém chamou, alguém convidou para que a pessoa participe. Há toda uma vida em jogo, há toda a motivação da própria sobrevivência humana dessas famílias que ali estão. E acima de tudo, uma esperança de conquistar a cidadania que lhe foi negada”

Djacira Araujo, MST-BA

Os inocentes de Leblon não viram o navio entrar. Trouxe bailarinas? Trouxe imigrantes? Trouxe um grama de rádio? Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram.”

Carlos Drumond de Andrade

A linguagem poética de Carlos Drumond de Andrade se entrelaça com o sentimento da liderança do MST, quando um e outra refletem um “eu lírico” pleno de denúncia da ignorância humana sobre a realidade que não consegue (nem quer) enxergar.

O Leblon do poeta é o universo simbólico da riqueza, o olhar do abastado sobre seu próprio bem-estar. A ocupação da liderança camponesa também é um movimento poético, onde a linguagem é a disputa pela inclusão social, o modo coletivo de sujeitos vulneráveis resistirem à opressão e se organizarem na luta para exigir a concretização dos direitos positivados nos textos legais e garantirem a sobrevivência de suas famílias.

A Constituição de 1988 flui nessa perspectiva da legalidade concreta, marcando a redemocratização do país, destroçado em sua trajetória histórica pela ditadura militar que estrangulou liberdades e utopias, de 1964 até 1985, deixando ainda um rastro de indiscutível risco para a normalidade institucional. Para além do texto sistemático, a Carta dignificou os conteúdos resultantes dos debates entre a constituinte e os coletivos de lutas que significaram a voz, as pautas e a participação popular na composição do documento que iria consagrar o Brasil como uma República Federativa arquitetada sobre os pilares do Estado Democrático de Direito.

Com esse horizonte, o texto constitucional incluiu e ampliou direitos civis, políticos, sociais e garantias fundamentais, como “prestação positiva do Estado para realizar a democracia econômica, social e como proteção aos mais fracos por força das desigualdades”. Impôs ao Estado brasileiro, lembra Ângela Soares de Araújo (em Evolução do Direito de Resistência na ordem constitucional, 2006) a responsabilidade de formular políticas públicas aptas a promoveram a distribuição equânime da justiça social aos sujeitos que o modo de produção capitalista marginaliza e despe de direitos que resultaram de conquistas civilizatórias. Negados esses direitos, mantidas as desigualdades e descumpridos os preceitos constitucionais, estão legitimados os movimentos sociais, política e juridicamente, para exercerem o direito de resistência, que desde a antiguidade até as teorias modernas, se enquadra nas concepções de contrapoder à ordem política estabelecida.

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Um dos modos de se contrapor e resistir pode se dar por meios legais, acessando a justiça. Mas eis que alguns impactos inviabilizam a concretude dessa oposição. A uma, a imagem da justiça, essa “vetusta figura” que se alinha sempre ao comando do coronelismo sobrevivente ainda nas togas, obediente aos latifúndios, donos de terra, de empresas, de espaços políticos e do poder que tais recursos garantem. E a lei? “A lei, ora, a lei.” A frase polêmica seria de Getúlio Vargas, em 1947, quando falava aos trabalhadores sobre o descumprimento de seus direitos por governantes depois de eleitos. Rogerio Álvaro Serra de Castro revive essa elocução para apontar o “abalo do prestigio da lei” resultante das agressões ao “edifício jurídico” praticadas por legisladores e intérpretes, e a “consequente inviabilização no tempo da convivência pacífica da sociedade humana”.

Luiz Alberto Warat exprime o discurso enigmático da lei, sua estratégia de “ocultamentos para justificar decisões, disfarçar a partilha do poder social” e as utopias que explicam “a produção institucional de um sujeito de direitos sem direito à transformação autônoma da sociedade […], uma enorme carga ideológica que atravessa todo o processo de interpretação da lei” (em Epistemologia e o ensino do direito: o sonho acabou, 2004).

João Pedro Stédile e Frei Sérgio, historiando as lutas do MST reanimam a fala desses sujeitos “espancados gratuitamente”, que “decidiram fazer da resistência uma atitude pública coletiva, um instrumento de luta” contra a lei injusta que protege o latifúndio. Desse modo “nenhum ser humano está obrigado a obedecer leis injustas” (em A luta pela terra no Brasil, 1993).

Henri David Thoureau importunava o sistema francês e teve sua liberdade subtraída em razão do discurso “revolucionário” quando indagava: “Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até transformarmos ou transgredi-las desde logo?” (em A desobediência civil, 2002).

Vale advertir, nessa trilha de reflexões, que estamos arrazoando sobre um direito que é objeto de previsão em tratados, pactos e documentos internacionais aos quais o Brasil aderiu e que reproduziu em suas cartas legais. Não obstante esse compromisso formal, a Conectas, em matéria veiculada em 2022, denuncia o “contexto de retração do espaço democrático”, em razão dos mecanismos do Poder Executivo (governo Jair Bolsonaro) na perspectiva de “alimentar animosidades e promover ataques concretos contra movimentos sociais, organizações de advocacia e populações específicas”.

O Relatório da Instituição para o Comitê de Direitos Humanos da ONU registra que o ano de 2020 revela que aumentou em quatro vezes o número de crimes contra a segurança nacional. E acrescenta que o governo brasileiro vai ser acionado para dar respostas a essas e “outras questões que enfraquecem o funcionamento do espaço democrático”.

Nesse contexto, tragam-se à luz os artigos 18, 19 e 20 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que consagram a manifestação como expressão coletiva e democrática de criar espaços de discussão. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos confirmou, no Art. 13, 1, do Pacto de San José da Costa Rica, o Pacto da Liberdade de pensamento e de expressão, incluindo a procura, a recepção e difusão de ideias e informações de qualquer natureza, por formas que sejam de escolha do sujeito.

A Constituição do Brasil não se apartou dos comandos internacionais e consolidou esse direito quando prescreve no Art. 5º, parágrafo IV, que é livre a manifestação do pensamento, e no Art. 220 que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Note-se, nesse sentido, que é verdade o elevado alcance vertical e dilatada a horizontalidade do arcabouço legal construído ao longo da história. Mas não é menos verdadeiro que as leis não conseguem cumprir as expectativas quanto ao que preveem, por razões que atravessam a inflação legislativa, o mau uso, a rapidez das mudanças sociais e a inconfiabilidade no legislador.

Com isso, a experiência humana buscou trilhar também por outros caminhos para confrontar o despotismo, exercendo a resistência cruzando por guerras, greves, marchas, movimentos de contracultura, mobilizações e ocupações de espaços públicos onde o povo possa promover atividades que explicitem, como pensam Dimitrri Dimoulis e Soraya Regina Gasparetto Lunardi, “o direito à livre manifestação do pensamento e à apresentação de propostas políticas”, enquanto “componente central de uma sociedade que pretende ser democrática. (O valor constitucional dos protestos populares – O fim dos “Inocentes do Leblon”).

Na esteira do movimento de corpos e ideias na disputa por garantir o exercício “simultâneo” de direitos fundamentais, a exemplo da liberdade de locomoção, de expressão, de manifestação, Valerio Arcary sintetiza que “argumentos são indispensáveis para legitimar a justiça das lutas, mas nada é mais importante que a mobilização das massas”.

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Catarina de Angola, ao discorrer sobre mover pessoas em espaços como “projeto ético proposto na constituição brasileira: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político”, pode ser invocada para pensar a hipótese de que, por um lado, se marcos legais são estruturantes para assegurar as mudanças essenciais ao desenvolvimento da sociedade, na esperança de acessar políticas públicas e efetivar direitos universais, por outro lado, a mobilização social é imprescindível para a construção de processos democráticos de “escuta atenta, debates e reflexões” para que essas mudanças aconteçam no mundo real (em Mobilização social e Comunicação).

Nesse horizonte de afirmações sobre liberdades públicas historicamente disputadas pelas gerações, importante comentar algumas práticas de manifestações de resistência de iniciativas camponesas e populares que ocuparam espaços midiáticos, sempre hábeis e céleres em colocar sob censura os movimentos que se opõem às ideias das classes dominantes, a partir da concepção desses “veículos de conteúdo manipulatório e alienante, visto que reproduzem a ideologia dominante” (Marcela Carnaúba Pimentel, em Meios de Comunicação de Massa como veículos de alienação).

Uma dessas ações coletivas se refere às ocupações promovidas pelo MST em áreas de empresa de celulose, nos Municípios de Teixeira de Freitas, Mucuri e Caravelas, no extremo sul da Bahia, atraindo as atenções da imprensa que alimenta a opinião pública traduzindo práticas de resistência como atos de violência contra o direito de propriedade. Ignorantes da reflexão de profissional da própria categoria, Maria Luísa Rogério, de que “a lealdade dos Jornalistas deve ser sempre com os cidadãos”, não conseguem entender que ocupações não são atos de transgressão atávica, de condutas “desviantes” como define o sistema penal, impondo que a polícia faça o cerco ostensivo, o ministério público denuncie e o “soberano” (o Poder Judiciário) penalize, tudo como determinam as ordens do capital.

Essa resposta coletiva à intransigência do Estado e à intervenção do aparato repressivo, quando os sem terra “preferem morrer lutando a morrer de fome”, se deve a contingencias históricas dramáticas de destituição de direitos que refletem a grave situação de desarrimo em que se encontram famílias atingidas na sua dignidade pela ausência das condições de vida impostas pelo “alijamento do processo de participação social e pela repressão da satisfação das mínimas necessidades”, na linha de reflexão de Antonio Carlos Wolkmer (Pluralismo Jurídico: novo paradigma de legitimação).

Eliane Oliveira, da direção estadual do MST na Bahia, aponta: “o território baiano sofre com a destruição sistemática dos recursos naturais, com o envenenamento dos solos e o assoreamento de nossos rios”. E questiona, com a pertinência de seu pertencimento e liderança do coletivo: “Como contabilizar o custo social das milhares de famílias que foram expulsas de suas terras e hoje vivem na vulnerabilidade social das periferias das cidades, nas encostas e nas margens das estradas? Como justificar o fato de termos as maiores taxas de concentração fundiária do país, e com eles graves índices de desigualdade social?”

O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), na linha de raciocínio que sempre orienta o sistema de justiça quando se trata de decidir conflitos de terra, acolhendo a demanda da Suzano Papel e Celulose, que, de acordo com Nota divulgada no iBahia.com, “informou que não vê legalidade na invasão”, tratou de determinar a reintegração de posse das áreas ocupadas pelo MST nos Municípios referidos, aplicando multas incompatíveis com a realidade econômica do coletivo, além de força policial, na hipótese de descumprimento.

Somem-se ao exemplo das ocupações do MST as manifestações dos movimentos sociais dos trabalhadores, trabalhadoras, forças populares e forças políticas que se uniram e mobilizaram o povo para ir às ruas em defesa da democracia, contra as ameaças de grupos alinhados a ideias fascistas que se afirmaram no país, graças às células de ódio e de desrespeito às conquistas civilizatórias implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro em 2018.

Sob essa ótica de compreender que “manifestações, protestos coletivos ou mesmo individuais são protegidos pela Constituição como direitos fundamentais”, retome-se o discurso de Dimitrri Dimoulis e Soraya Regina Gasparetto Lunardi quando questionam “qual a finalidade da existência de ruas e demais espaços públicos senão a sua utilização pela população inclusive para manifestações individuais e coletivas” enquanto alegam que “na verdade, os espaços públicos só fazem sentido como pontos de encontro, de comunicação, de deliberação e de protesto”.

A propósito dessa afirmativa, até mesmo o tablado intocável do sistema de justiça acalora o debate sobre a pertença desses lugares de uso comum, abertos à coletividade, “que preenchem com vida os hiatos urbanos, estão diretamente associados à construção do que chamamos de cidade e influenciam as relações que se criam dentro delas”, como definem Laura Caccia e Laura Azevedo, quando o STF anuncia que “em uma sociedade democrática, o espaço público não é apenas um lugar de circulação, mas também de participação” (RE 806339 / SE STF).

Um alerta se faz essencial e forçoso para estabelecer o ponto nuclear desses comentários, afastando, de imediato, qualquer interpretação equivocada sobre quais mobilizações estão pautadas neste recinto de reflexões como parte de uma agenda de lutas coletivas que unem forças populares em defesa dos pactos de civilidade que construíram a democracia que as ruas e as instituições defendem.

A mobilização que se propala aparece como ferramenta de resistência a valores reacionários que alinham à “defesa abstrata da ‘nação’ características como o moralismo”, a “homofobia”, a “xenofobia”, o “racismo”, a “defesa da família” como “constituintes da nação” e o “clamor pela ordem”. Não se defende aqui, sob qualquer teoria, a “cena dantesca de ‘manifestantes’ enrolados na bandeira do Brasil, de joelhos e mãos na cabeça, pedindo uma intervenção militar” que, contraditoriamente, “não mostra uma sociedade ‘doente,’ mas a sociedade ‘normal´, exposta sem os filtros que rotineiramente oculta” (Mauro Iasi, em A psicologia de massas do fascismo ontem e hoje: por que as massas caminham sob a direção de seus algozes?).

O movimento autoritário que ocupou Brasília no dia 8 de janeiro, se insurgindo contra o resultado das urnas, praticando crimes diversos contra o Estado Democrático de Direito, depredando o patrimônio público, ultrajando as posturas de polidez que determinam a convivência entre pensamentos que se contrapõem e fazem a disputa no campo das ideias, não se acerta com a energia militante das movimentações de massa de que se fala neste texto. O que conseguiram foi estimular e consolidar a mobilização popular na expectativa de fortalecer o cerco de defesa da normalidade democrática.

Nessa ordem, o deputado Paulo Paim (PT-RS) se manifestou ao afirmar que: “A democracia é um processo constante. Está no fortalecimento das instituições, na soberania do voto, no avanço da participação popular e das diversidades políticas, culturais e sociais, no respeito aos direitos humanos”.

Jaques Wagner, senador do PT-BA, em referência a eventos populares e manifestações que verbalizaram repulsa aos ataques às instituições republicanas e à soberania popular, entende que “os atos realizados vão marcar a história por unir entidades, juristas, artistas, empresários e estudantes em torno de um mesmo objetivo: a defesa da democracia e do processo eleitoral”.

Aqui se legitima o fazer das ruas, dos fios visíveis ou invisíveis de conexão das redes sociais, espaços onde as falas acontecem e os círculos de conversa modulam o tom dos discursos de protesto contra os governos autoritários, as enviesadas tochas de experiências que fatalizaram milhares de vida, que destituíram centenas de projetos democráticos. Aqui se autentica o fazer democracia através da mobilização de massas, do “ajuntamento” de corpos e de espíritos pulsantes de cidadania de trabalhadores e movimentos sociais conscientes de que é vital para o Estado Democrático de Direito sepultar os propósitos que tomaram fôlego no país desde a experiência trágica dos governos militares, reacendidos com a chegada do séquito arrogante e ultrajante de Jair Bolsonaro, cabal no ódio de classe caraterístico do fascismo.

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Nilo Meza, economista e cientista político peruano, comentando o caos instalado no Peru, “as manobras direitistas de mais repressão criminosa por parte dos agentes de Estado”, divulga a resposta das ruas: “não temos mais medo”. E prossegue em sua “ode à liberdade de ocupação de espaços”, anunciando que “diante da sistemática recusa e escárnio daqueles que se encarregavam da gestão das instituições públicas, o povo resolveu lembrar que o único detentor do poder é ele, o soberano”.

Ainda usando de seu aguçado exercício da crítica, dá voz e fala às ruas quando deixam claro que: “O poder popular existe e se expressa, agora, nas ruas e praças, desarticulando aqueles que, do Executivo e do Legislativo, tentaram se apropriar dele”. E aponta a conclusão da “direita fascista e seus aliados” sobre a impossibilidade de governarem sem ter vencido as eleições.

“O que mais os milhares de pobres do campo e da cidade, inclusive microempresários, poderiam perder com essa mobilização popular com sinais de rebelião?”

Enfrentando essa indagação, Nilo Meza traz à lembrança o Manifesto Comunista (Friedrich Engels e Karl Marx): “Que as classes dominantes tremam, se quiserem, com a perspectiva de uma revolução comunista. Os proletários, com ela, nada têm a perder, exceto seus grilhões. Em vez disso, eles têm um mundo inteiro a ganhar. Proletários de todos o mundo, uni-vos!”

E a inteligência criativa do cientista político peruano consegue parafrasear o fragmento que atravessou a história, direcionando o resultado à direita política e empresarial de seu país em crise. Nestes comentários, com a devida ética na informação de que não somos originais e que estamos reproduzindo, por escolha política, a “adaptação” formulada por Nilo Meza, endereçamos à extrema direita que insiste em se “esparramar” pelos espaços públicos de nosso país, na tentativa espúria de usurpar a esperança que democraticamente recuperamos.

“Que as classes dominantes e os grupos de poder tremam diante da perspectiva de uma rebelião popular. Os pobres do campo e da cidade, e com eles os microempresários, nada têm a perder, a não ser sua nefasta dependência e submissão aos monopólios e monopsônios. Pobres do campo e das cidades do Brasil, uni-vos!”

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