Para compreender o crescimento da extrema direita no mundo, como expressa a vitória eleitoral de Donald Trump na eleição de novembro de 2024 nos Estados Unidos é necessário analisar o contexto internacional e as particularidades de cada país . No entanto é fato que houve a partir do início deste século o crescimento político e eleitoral de forças e partidos de extrema-direita, ou seja, se trata de uma tendência mundial, como mostra o cientista político holandês Cas Mudde no livro A extrema Direita Hoje (Eduerj, 2022). Para ele, há quatro “ondas” da extrema direita no pós Segunda Guerra Mundial: o Neofascismo (1945-1955); O populismo de direita (1955-1980); a Direita radical (1980-2000) e quarta a partir dos anos 2000.
E sobre esta formula doze teses “que ilustram e resumem os aspectos mais importantes da extrema direita contemporânea”, entre elas, a sua imensa heterogeneidade (mobiliza-se em diferentes tipos de organizações, como partidos e movimentos sociais e subculturas: algumas são globais, muitas são nacionais, e a maioria apenas regional ou mesmo local. Na Europa, embora tenha pontos comuns, como a anti-imigração, por exemplo, não há uma pauta homogênea entre os partidos de extrema direita); sua consolidação no cenário político (“chegou para ficar”); sua normalização (que ele qualifica como “normalidade patológica”); que nenhum país é imune ao crescimento da extrema direita e que não existe uma única maneira de lidar com isso, a não ser o fortalecimento da democracia, como ele defende na 12ª tese: “ A ênfase deve estar no fortalecimento da democracia liberal”.
E esta quarta “onda” permanece, expressa no crescimento organizacional e eleitoral em muitos países, como, entre outros exemplos, para citar os mais recentes, a vitória de Javier Milei na Argentina (novembro de 2023), nas eleições para o Parlamento Europeu (entre os dias 6 e 9 de junho de 2024),e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 5 de novembro de 2024.
Mas foram antecedidas em eleições para diversos parlamentos na Europa (Itália, Espanha, Portugal, França, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Finlândia, Suécia, Suíça e Dinamarca, além de estar no governo na Turquia, Hungria, Polônia), no Oriente Médio (Israel), na Ásia (Índia, Paquistão e Filipinas) e na América do Sul (Brasil, Argentina (com Milei no governo), Chile, Colômbia, Paraguai (Paraguayo Cubas, conhecido como “Payo Cubas”, de extrema-direita, ficou em terceiro lugar na eleição de abril de 2023, com 23% dos votos), Uruguai (ver artigo A maré da extrema direita chega ao Uruguai – https://espacoantifascista.net/2024/04/02/extrema-deireita/a-mare-da-extrema-direita-chega-ao-uruguai/) Bolívia, Peru e Equador e América Central (El Salvador).
Esse crescimento é de fato uma ameaça às democracias dos respectivos países. No entanto, por sua importância econômica, política e militar, a vitória da extrema direita nos Estados Unidos em novembro de 2024 tem um significado bem mais amplo do que, por exemplo, a vitória de Milei na Argentina.
Nesse sentido, quais poderão ser os desdobramentos em escala global da vitória de Trump? É possível afirmar que haja de fato o perigo de retrocesso para as democracias liberais do mundo? Para o cientista político Luis Felipe Miguel seu desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático e em relação aos Estados Unidos “pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense, isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal”.
Para ele “a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX”. E se refere a um arranjo que “repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. E que a crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral” (https://aterraeredonda.com.br/donald-trump-mais-um-prego-no-caixao-da-democracia-liberal/)
A questão central diz respeito saber qual é a capacidade de resistência não apenas da classe trabalhadora nos Estados Unidos ( muitos dos seus integrantes inclusive contribuíram para a vitória de Trump) e não parece haver uma resistência organizada nesse sentido. O fato é que as instituições políticas, como os partidos políticos e os sindicatos estão desconectadas das demandas sociais, com pouca capacidade de organização, articulação e mobilização, que resulta não apenas no crescimento da extrema direita, usando com habilidade as redes sociais (com teorias conspiratórias, fake news etc., como se evidenciam nos processos eleitorais), mas também no desinteresse de considerável parcela da população, incluindo as democracias liberais da Europa, de não participação eleitoral, expressando desconfiança nas instituições (os partidos e os respectivos Congressos).
Um relatório publicado em 2022 pelo Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA) constatou retrocessos democráticos em vários países, incluindo os Estados Unidos (que deve ser ampliada no novo governo de Donald Trump a partir do próximo ano), o Brasil (na época sob o governo Bolsonaro) no qual havia uma “erosão mais severa e deliberada”, junto com El Salvador, Hungria e Polônia (os três últimos, continuam). Segundo Kevin Casas-Zamora, secretário-geral do IDEA, há desafios “severos” à democracia em todo o mundo, acentuados pela “distância crescente e notada entre as expectativas sociais de bem-estar e as capacidades das instituições democráticas para atendê-las”.
Naquele momento, que não se alterou substancialmente, segundo o relatório mais de dois terços da população mundial viviam em democracias em erosão ou em regimes autoritários ou híbridos, com diferenças entre cada continente. A Europa, por exemplo, vivia um processo de estagnação democrática, enquanto a Ásia e o Pacífico passavam “por uma clara regressão e uma “solidificação” do autoritarismo”. (https://www.dw.com/pt-br/brasil-e-eua-tiveram-retrocesso-democr%C3%A1tico-diz-relat%C3%B3rio/a-63945529.
Em relação à vitória eleitoral de Donald Trump em novembro de 2024, uma das interpretações é a de impulsionará às forças antidemocráticas e não apenas nos Estados Unidos. Para Isabela Kalil, coordenadora do Observatório da Extrema Direita e professora da Escola de Sociologia Política de São Paulo, intensificará a reorganização da extrema-direita nas Américas e que “um dos aspectos centrais dessa reorganização é o uso estratégico da desinformação, de noticias falsas e teorias da conspiração”, e não só isso, ou seja, não se trata apenas de manipulação ou desinformação do eleitorado, mas “também está relacionada à como a extrema direita, de maneira simplificada, consegue oferecer respostas (…) o fato é que parte do eleitorado se sente contemplada nas saídas que a extrema direita apresenta (…) em questões como emprego, renda e outras dimensões da vida, nas quais uma parte da população se sente representada pelas agendas da extrema direita”. (https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2024/11/07/trump-presidente-eua-impacto-politica-mundial-entrevista-isabela-kalil).
Nesse sentido, cabe a pergunta: quais serão seus impactos no Brasil ? É possível que haja pressão para livrar Bolsonaro de seus processos na justiça, concessão de anistia a ele e seus seguidores, presos e condenados – e muitos ainda a serem – pelos atos de vandalismo e tentativa de golpe no dia 8 de janeiro de 2023?
É possível que os arautos da desinformação e incitadores de violência continuem e se ampliem, mas o cenário mais provável, caso haja ações ou pressões dos Estados Unidos, é a manutenção e continuidade dos processos e das condenações, sem anistia (mesmo que seja aprovada no Congresso Nacional, será barrada no Supremo Tribunal Federal).
Embora com o crescimento da extrema direita nos Estados Unidos (assim como em outros países) e os previsíveis retrocessos democráticos, hoje o cenário internacional não é o mesmo dos anos 1960/70 quando os Estados Unidos, como maior potência militar do mundo de então, ajudaram a derrubar governos eleitos democraticamente e apoiaram ditaduras, como ocorreu em relação ao Uruguai, Argentina, Chile e Brasil, para citar apenas alguns exemplos na América do Sul, certamente não vão articular golpes militares ou muito menos, em relação ao Brasil, impor mudanças no judiciário (como?) .
Hoje, o grande desafio para salvar a democracia é justamente a sua defesa, construir frentes democráticas que possam enfrentar os retrocessos. A extrema direita, mesmo tendo crescido, não é maioria nem dos aptos a votar em países com ou sem voto obrigatório, como os Estados Unidos, nem das respectivas populações. Nos Estados Unidos, por exemplo, com uma população de quase 350 milhões de pessoas e em torno de 240 milhões de aptos a votar, até o dia 13 de novembro de 2024, Donald Trump tinha 75.519.197 votos e Kamala Harris 72.371.902 (50,2% e 48,2% respectivamente) e mesmo considerando que o comparecimento às urnas tenha sido o 2º maior em 100 anos em eleição presidencial (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/11/eua-tiveram-o-segundo-maior-comparecimento-nas-urnas-em-100-anos.shtml), ou seja, quase 65% dos aptos a votar, há de se considerar o grande número de abstenções e também os votos dados a Kamala Harris. Como disse o jornalista Reinaldo Azevedo “em tempo menos acanalhados, qualquer observador razoável diria que o presidente eleito não recebeu carta branca para fazer o que lhe der na telha” (Trump usa Musk para detonar ‘bomba atômica’, Uol, 13/11/2024).
Se a vitória eleitoral de Donald Trump, é de fato um grande retrocesso democrático e mesmo considerando a possibilidade de que ele, como afirmam Henry Giroux e Gustavo Figueiredo seja “capaz de instituir um sistema criminoso que poderá ser usado para exterminar oponentes, torturar imigrantes, prender os intelectuais e ativistas mais críticos ao seu governo e promulgar um conjunto de leis, normas e regulamentos editados pela extrema direita para controlar a sociedade e implantar um sistema autoritário que poderá vir a aniquilar o regime de democracia mais poderoso do mundo” ( Os riscos da extrema direita: autoritarismo, violência e corrosão da democracia, Le Monde Diplomatique Brasil, 13/09/2024) creio que não significa e nem significará o fim da democracia. E cabe às forças democráticas de cada país, a resistência em relação aos retrocessos (inclusive nos Estados Unidos).