A vitória de Fernanda Torres no “Globo de Ouro” pelo papel de Eunice Paiva em “Ainda Estou Aqui”, para além do reconhecimento do seu talento em si, é muito simbólico para um país que tem a tradição de apagamento da sua história. O filme conta um capítulo da ditadura civil-militar brasileira, que até hoje é negada pelas viúvas do regime de exceção que vigorou no Brasil de 1964 a 1985.
O Brasil nunca fez um acerto de contas com o seu passado, anistiou torturadores e recentemente elegeu um presidente que, ao votar a favor do golpe travestido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Esse mesmo Brasil naturaliza, em nome da “liberdade de expressão”, discursos que pedem a volta do AI-5, o mais violento Ato Institucional da ditadura militar, que deu ao general de plantão, Arthur da Costa Silva, o poder de fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares e suspender os direitos de qualquer cidadão durante dez anos.
Foram os “anos de chumbo” da ditadura militar, com o recrudescimento da repressão do Estado, materializada com o fortalecimento da censura, a ampliação da tortura como método violento de coerção e a normalização dos crimes contra a humanidade.
A tradição de apagamento da história, a negação do nosso passado autoritário e a não promoção de uma justiça que de fato resgate a memória, a verdade e a reparação necessárias é o que permite que a nossa tragédia se repita sempre como farsa, como concluiu Karl Marx em sua obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”.
É simbólico também que o prêmio para Fernanda Torres tenha vindo a apenas três dias do aniversário de dois anos da nossa mais recente tentativa de golpe, intentada pelos derrotados das eleições de 2022, que depredaram Brasília no fatídico 8 de janeiro de 2023 com o objetivo de depor o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Ainda Estou Aqui”, o filme que deu a Fernanda Torres o Globo de Ouro, jogou luz novamente sobre esse período sombrio que muitos insistem em querer reescrever para que a atual e as próximas gerações não saibam o que realmente foi a ditadura brasileira.
Aqui cabe resgatar um episódio importante que conecta o filme ao personagem que encarna, nos dias atuais, o ideário autoritário que serve de base para os que reivindicam a volta ao passado. Em 2014, quando a Câmara dos Deputados inaugurou um busto em homenagem a Rubens Paiva, ex-deputado sequestrado e assassinado pela ditadura, cujo desaparecimento é contado no filme “Ainda Estou Aqui”, Jair Bolsonaro, denunciado pela Polícia Federal no inquérito sobre a trama golpista que pretendia até assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, cuspiu na estátua e agrediu a memória dele chamando-o de “comunista” e “vagabundo”.
O desprezo de Bolsonaro pela democracia não é nenhuma novidade. O que choca é que, mesmo diante de todos os fatos que vieram à tona nos últimos anos, ele ainda seja aclamado como “mito” por uma parcela significativa da sociedade brasileira, que parece fechar os olhos para o retrocesso civilizacional que essa figura nefasta representa.
Os tempos são cada vez mais sombrios, o futuro é sempre incerto e o ovo da serpente do fascismo continua sendo chocado. Por isso é tão importante lembrar da história para que ela nunca mais aconteça e repetir sem titubear: sem anistia.