Getting your Trinity Audio player ready...
|
Mais um prédio histórico veio abaixo em Natal esta semana. O casarão do início do século XX, que combinava diferentes estilos arquitetônicos inspirados na belle époque francesa pertencia ao comerciante abolicionista Romualdo Galvão. Em seu lugar, será construído um estacionamento:
“Arquitetonicamente é uma perda porque Natal desenvolveu esse estilo eclético no início do século XX inspirado nos padrões europeus de desenvolvimento, refletindo a mentalidade de uma cidade que queria ser moderna”, contextualiza o professor de História Henrique Lucena.
“O que nos deixa chocado é porque quem derrubou foi o Sesc, que já fez tantos passeios históricos e presta serviços para a cidade. Não sou o tipo de historiador que acha que o patrimônio deve ser imutável, ele tem que ter sentido para a comunidade, mas a preservação traz urbanidade, pertencimento. Poderiam conservar a fachada e fazer a reforma do prédio, dando um novo sentido. Por que não transformar em uma galeria já que o Sesc tem tantas obras de arte? Se estacionamento fosse importante, que deixasse a fachada, como já vi na Europa, Recife e Olinda”, sugere o professor.
O prédio, que não era tombado e era particular, foi derrubado à noite e amanheceu o dia já no chão. Além de ser a casa de Romualdo Galvão, um influente comerciante, no local também funcionaram diversas instituições, como cursinho e a sede da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (STTU).
O casarão era uma construção que seguia padrões de construções mais abastados, com influência da missão cultural francesa e da Academia Imperial de Belas Artes.
“São aquelas casas que não são mais coladas nas casas vizinhas. Os terrenos são maiores, elas têm vãos tanto do lado direito quanto do esquerdo para fazer essa separação. Conta com recuo em relação ao limite da rua e com jardins frontais e laterais, com mais de um pavimento”, detalha Almir Oliveira, professor do Departamento de Turismo da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
“Vi alguns vídeos do pessoal reclamando: ‘as elites potiguares vão para fora da cidade achar bonito os outros patrimônios, enquanto o patrimônio aqui dentro não são preservados, respeitados’. O patrimônio aqui não é respeitado porque essa elite é dona de parte desses empreendimentos e querem usar para outros negócios”, acrescenta.
Educação patrimonial
Preservar a arquitetura e seu valor histórico faz parte das ações de políticas públicas, que não têm sido trabalhadas na cidade.
“Precisamos de uma política que consiga preservar o que temos de memória de uma cidade que não existe mais, a não ser em suas fachadas e ruas. Ficamos tristes como historiadores por mais essa perda na memória de nossa formação. Um casarão traz uma memória guardada, inclusive, lá funcionou o Educandário Natal. É memória que se vai”, lamenta Luciano Capistrano, historiador.
Com inúmeros prédios fechados, quando não abandonados, a Cidade Alta e o bairro da Ribeira têm vivido anos de negligência. Segundo o historiador, as poucas iniciativas individuais é que têm feito a diferença.
“É um momento delicado para a Cidade Alta e a Ribeira. Se por um lado temos algumas ações que vislumbram uma retomada com algumas iniciativas que nos dão esperança, por outro temos alguns espaços que precisam de atendimento urgente, como a antiga sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio Grande do Norte), que tem projeto de restauro, mas está parado. Também tem a Casa do Estudante, que precisa urgentemente ser ocupado. A governadora até anunciou a instalação de órgão público no início do mandato. O local já foi hospital, quartel da polícia, oficina de novos artífices e aprendizes. Uma coisa interessante que está acontecendo é a restauração da antiga Faculdade de Direito da UFRN (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte) ao lado do Teatro Alberto Maranhão. Imagine se descêssemos e encontrássemos o Teatro e a Faculdade restaurada, o Museu de Cultura Djalma Maranhão aberto…”, vislumbra Capistrano.
Do antigo casarão na Avenida Rio Branco, apenas o muro com ferro vazado continua de pé.
“Stella Breciann diz que as cidades são, antes de tudo, uma experiência visual. Com essa destruição nós perdemos um pouco isso. Precisamos de uma política de educação patrimonial para valorizarmos esses lugares e o primeiro passo é fazer com que pessoas se apropriem desses espaços. Mesmo que o casarão tenha sido de alguém da elite, esses prédios também falam dos que foram silenciados. Ao preservar o prédio também estamos, de forma indireta, preservando os que não estão ali. A ideia não é dizer que Natal era maravilhosa e que todos viviam bem, sabemos das diferenças. O que não podemos negar é o valor arquitetônico da construção, poderia servir para contar a história da cidade. É um apagamento. É como o Forte dos Reis Magos, não posso deixar de fazer referência à população potiguara e ao massacre que aconteceu ali, mas não é por isso que vou passar com um trator e derrubar a edificação. Ficamos pensando qual será o próximo?”, questiona Luciano Capistrano.
Quem foi Romualdo Galvão
O casarão derrubado pelo Sesc foi moradia do influente comerciante Romualdo Galvão, que acabou se tornando prefeito de Mossoró e de Natal. Nascido na cidade de Campo Grande, Romualdo Galvão era maçom, defendia o liberalismo e era um abolicionista.
“Ele era abolicionista e um comerciante importante tanto em Mossoró, como em Natal, senão não teria chegado à condição de prefeito das duas cidades. Ele foi prefeito de Mossoró entre 1892 e 1895, depois se transfere para Natal, onde vem desenvolver atividades comerciais e é indicado a prefeito em 1909 (nessa época os prefeitos eram indicados pelos governadores), tornando-se o 4º prefeito da capital. A República foi instalada na década de 1890, mas as instituições só começam a funcionar de forma mais propositiva apenas posteriormente, por isso era comum as indicações dos prefeitos das capitais pelos governadores”, explica Almir Oliveira, professor do Depto. de Turismo da UFRN.
Avenida Rio Branco
Antes de se tornar Avenida Rio Branco, essa via, que segue como a principal da Cidade Alta e onde estava o casarão, se chamava Rua Nova, devido aos inúmeros empreendimentos que se instalavam no local.
“A antiga Rua Nova ganha importância por atravessar toda a Cidade Alta, passando a limitar a cidade a leste. Começa no Baldo e vai até a Ribeira. Ela ganha importância pelo peso que a Cidade Alta também ganha. A Ribeira passa a ser lugar para plantio ou para os galpões que ficavam na beira do rio ou próximo ao porto, onde eram realizadas as exportações do que era produzido na cidade. A Rio Branco abrigou as residências mais importantes da cidade na época, como o casarão de Romualdo Galvão, o casarão de João Freire. As primeiras solicitações de terras para construções datam de 1822”, resgata Almir.
Além das residências mais importantes da época, a Avenida Rio Branco também abrigou a Escola de Aprendizes e Artífices – onde hoje é o prédio do IFRN (Instituto Federal do RN) – foi sede do Colégio Atheneu nos primos anos de funcionamento, onde hoje funciona a Escola Estadual Winston Churchill, além de ter abrigado o Mercado Público, que pegou fogo na década de 1970.
“Outra coisa importante para pensarmos a Rio Branco é o levante de 1935, principalmente, por causa do quartel do 21º Batalhão de Caçadores do Exército (onde hoje é o Winston Churchill). Você vai ter núcleos, batalhas e disputas por espaços com a tomada da capital pela intentona comunista. Como aquela região tinha a presença do exército, há uma tentativa de tomar de assalto o espaço”, resgata o professor Almir.
Ele também explica que, ainda no século XIX, na antiga Rua Nova, foi instalada a forca para aplicação da pena de morte.
“Foram em tempos distintos. A forca foi instalada na década de 1840 enquanto o casarão será construído no final do século XIX e início do século XX”, revela.
A Avenida Rio Brando permanece majoritariamente residencial até a década de 1970, quando começam a surgir as lojas comerciais.
“É interessante porque o processo de ocupação do centro pelo comércio vai se dar a partir da década de 1980/ 1990. Esse fim do centro histórico como espaço comercial é algo que vai ocorrer já no século XXI, com o fechamento de algumas das principais lojas naquela região, enquanto nas grandes capitais do Brasil esse processo se deu na década de 1930/40 com a construção das grandes lojas e shoppings centers”, detalha Almir Oliveira.
Uma cidade sem futuro
O despego com a própria história não é uma característica recente do natalense. Em uma viagem à capital potiguar, ainda nos idos da década de 1920, Mário de Andrade fala sobre o desapego do natalense em busca da modernidade:
“É um futuro onde não cabe todo mundo, que é privilégio para alguns. Um futuro no qual você se preocupa com o que é que vai sobrar da cidade, uais são os exemplos que vão ficar da cidade. Temos um centro histórico com uma série de imóveis fechados que poderiam estar sendo repensados até mesmo para moradia, para pulsar o centro histórico e não, necessariamente em processo de gentrificação. Mas, como essas questões são tidas como menores, quando você tem milhões para fazer determinadas obras na cidade que termina beneficiando muito poucos e quando você precisa do dinheiro para beneficiar muitos, se torna inviável”, critica o professor da UFRN.
UM Agência Saiba Mais entrou em contato com o Serviço Social do Comércio (Sesc). Por meio de nota, a instituição informou que:
“O imóvel localizado no endereço Avenida Rio Branco, 411, será um novo estacionamento que atenderá aos clientes e permitirá a expansão de serviços da Unidade Sesc Rio Branco, que, atualmente, recebe um público médio diário de 1.200 pessoas, com os serviços de biblioteca, espaço de eventos e restaurante”.