A tortura de 15 soldados, quatro deles mortos dentro de um batalhão militar em Barra Mansa (RJ), em 1972, é um dos episódios mais marcantes e prova de como a ditadura militar (1964-1985) agia com violência brutal para tentar extrair confissões ou mesmo apenas causar medo em pessoas detidas.
Cinquenta anos depois desses crimes, tornaram-se públicos os autos do processo que resultou na condenação de dez dos envolvidos. Assim, finalmente é possível conhecer detalhes do que ocorreu no 1º BIB (Batalhão de Infantaria Blindada).
O acesso à cópia digital do processo foi possível graças a uma parceria entre o Instituto Vladimir Herzog e a agência de dados Fiquem Sabendo, especializada na LAI (Lei de Acesso à Informação), que obteve os documentos do STM (Superior Tribunal Militar). A cientista política Glenda Mezarobba foi a primeira a escrever sobre o tema.
O caso ficou conhecido como “o crime do século”, na designação do general Rodrigo Octávio Jordão Ramos. Militares de distintos escalões participaram das torturas seguidas de morte.
Nos autos, a gravidade da ação foi sintetizada pelo procurador da Justiça José Manes Leitão, que afirmou que os militares agiram “da forma mais brutal” e que vítimas morreram “tal a ferocidade com que foram espancadas pelos indiciados”.
O processo n° 17/72 é até hoje o único caso em que militares foram julgados, condenados e cumpriram penas por tortura e mortes. Depois da ditadura, já foram impetradas 53 ações pelo MPF (Ministério Público Federal) pedindo a punição de criminosos do período, sem ter havido nenhuma condenação até o momento.
Torturas, violação de cadáveres e mais crimes
O processo do “crime do século” é extenso: são 2.300 páginas divididas em cinco volumes, que trazem detalhes do horror das torturas praticadas dentro de um quartel militar —e perpetrada contra militares.
Segundo o relato nos autos, no dia 26 de dezembro de 1971, o então capitão Dálgio Miranda Niebus foi encarregado pelo tenente-coronel Gladstone Pernasetti Teixeira (à época comandante interino do 1º BIB) para “averiguar tráfico e uso de tóxicos, em especial maconha”, dentro do batalhão.
Quatro soldados alegadamente suspeitos foram presos após a sindicância ter sido aberta. Em poucos dias, os detidos passaram a 15. Todos foram submetidos a graves sessões de tortura conduzidas pelo capitão Niebus e sua equipe, que “usava de métodos inimagináveis para obter a confissão”.
Esses termos estão citados em um dos mais contundentes documentos dos autos, assinado pelo procurador Leitão. Em 21 de março de 1972, ele deu detalhes da prática para pedir a prisão preventiva dos militares acusados pelos crimes. O juiz-auditor Helmo de Azevedo Süssekind acolheu a proposta no dia seguinte.
Durante as cruéis sessões de tortura, quatro dos 15 soldados não resistiram. Seus nomes eram Monção, Vanderlei, Geomar e Vicente.
Os dois primeiros foram mortos no dia 12 de janeiro de 1972, um dia após terem sido detidos. Os corpos foram ocultados em outra ação dos criminosos, que simularam uma fuga do batalhão. Os dois últimos morreram nos dias subsequentes.
No dia 17 de janeiro, em comunicado público, o tenente-coronel Gladstone afirmou que os quatro soldados teriam desertado do Exército, o que levantou suspeita de familiares.
Em artigo na Folha, o jornalista Elio Gaspari conta que a denúncia acabou sendo divulgada à época porque familiares de um dos soldados denunciaram o fato a um padre, e ele levou o caso ao bispo de Volta Redonda, dom Waldyr Calheiros. Ele celebrou então uma missa de sétimo dia para o jovem e denunciou o que sabia.
Além das torturas e mortes, há outros crimes imputados aos militares condenados, como violação de cadáveres, omissão de socorro às vítimas e falsidade.
Condenações duras por ‘métodos bárbaros’
O julgamento do caso pelo Conselho Especial de Justiça teve início no dia 17 de janeiro de 1973, na sede da 2ª Auditoria do Exército, no Rio.
Depois de ter se reunido em sessão por seis dias, o conselho entendeu que os fatos “receberam a repulsa unânime dos escalões superiores do Exército” e viu “elevada intensidade do dolo com que agiram os acusados, graves os resultados dos crimes praticados, grande o prejuízo moral à instituição a quem pertencem vítimas e acusados, além dos métodos bárbaros que empregaram”.
Por unanimidade de votos, no dia 22 de janeiro, eles foram condenados, em sentença assinada pelo coronel Vicente Galatro, presidente da comissão.
Em julgamento final dos recursos, em junho de 1974, o STM apresentou sua decisão final em 26 páginas. O voto mais marcante foi o do general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, que detalhou, em separado, sua decisão sobre a “sequência verdadeiramente macabra que pode bem caracterizar sem dúvida o ‘crime do século’ em unidades militares”.
As penas finais, após recursos julgados, foram:
- Capitão Niebus – 67 anos e 8 meses de prisão
- Segundo-tenente Miranda – 67 anos e 8 meses de prisão
- Cabo Cruz – 50 anos e 9 meses de prisão
- Cabo Freitas – 50 anos e 9 meses de prisão
- Terceiro-sargento Etel – 50 anos e 9 meses de prisão
- Terceiro-sargento Rubens – 50 anos e 9 meses de prisão
- Terceiro-sargento Guedes – 50 anos e 9 meses de prisão
- Tenente-coronel Gladstone – 10 meses de prisão
- Nelson Ribeiro de Moura (civil) – 4 meses de prisão
- Iranides Ferreira (civil)- 4 meses de prisão
Revelações importantes
A cientista política Glenda Mezarobba afirma que ter acesso aos autos daquela época no Brasil de 2022 é algo “muito significativo”.
“São vários os motivos: os crimes foram cometidos por militares, contra militares, dentro de um quartel; e os acusados foram julgados por um tribunal militar naquele que, até onde se tem notícia, constitui o único caso de condenação, no Brasil e em última instância, de integrantes das Forças Armadas por graves violações de direitos humanos ocorridas no período”, diz.
Glenda integra o conselho deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e pesquisou, em seu doutorado em ciência política na USP (Universidade de São Paulo), o tratamento dado por Brasil, Argentina e Chile ao legado deixado pelas respectivas ditaduras militares. É autora do livro “Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências” (Humanitas).
Para ela, o caso também é simbólico por ter seus detalhes revelados no momento em que o país encerra o mandato de um militar, que fez defesas reiteradas da ditadura.
“O país é presidido por um capitão que se elegeu fazendo apologia à violência e enaltecendo torturadores —algo que os generais da ditadura jamais ousaram fazer publicamente”, afirma.
“No processo, é mais do que evidente o empenho de agentes públicos em manter os autos longe da imprensa e da sociedade. Ele explicita em horripilantes detalhes aquilo que começou a ser denunciado logo após o golpe de 1964”, diz.
Por isso ela compara com o sigilo imposto a inúmeros documentos recentes no governo de Jair Bolsonaro (PL). “O que podem revelar os documentos atuais que acabam de ser incluídos como sigilosos?”
Para ela, o julgamento militar desmente de maneira definitiva e incontornável a narrativa de que não houve tortura no regime militar, como afirmam as Forças Armadas.
Durante a ditadura, foi disseminada a tortura contra presos e perseguidos políticos. A violência ocorria sob qualquer pretexto, envolvia todo tipo de instrumentos e era praticada por policiais, civis e militares, e integrantes dos mais distintos escalões das Forças Armadas. Os autos do processo mostram que os militares sabiam se tratar de brutal indignidade e, naturalmente, não ignoravam que a hierarquia impõe responsabilidade definida em todos os níveis de comando.”
Cientista política Glenda Mezarobba