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Como funcionam os serviços de aborto legal na Bahia e quais são os principais entraves

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Dados da Pesquisa Nacional de Aborto de 2021 revelam que 5 milhões de mulheres no Brasil já fizeram aborto e metade delas o fez antes dos 19 anos. No entanto, por causa da criminalização e do estigma, até quem tem direito ao aborto legal tem dificuldade de acessar os serviços de saúde.

A legislação brasileira prevê o direito ao aborto quando a gravidez apresenta risco à vida da pessoa gestante; em decorrência de violência sexual e no caso de fetos anencéfalos. Esse direito, porém, não tem se cumprido efetivamente no país, e na Bahia não é diferente.

Essas situações são observadas no dia a dia da médica ginecologista e obstetra, feminista, Romina Hamui, que é coordenadora do Serviço de Direitos Sexuais e Reprodutivos da maternidade Maria da Conceição de Jesus, no subúrbio de Salvador. Na sua rotina hospitalar, ela coordena o setor dedicado aos procedimentos de aborto legal e atenção a vítimas de violência sexual.

A médica defende que a relação entre as esferas legal, moral e religiosa estão, inegavelmente, conectadas no processo de estigmatização em relação ao aborto que as mulheres e pessoas com capacidade de gestar sofrem nas suas comunidades. “Assim como também barreiras existentes nos próprios serviços de saúde aonde essas gestantes procuram atendimento, já que ali se reproduzem mecanismos de discriminação. Isso acaba fazendo com que essas pessoas se afastem dos serviços de saúde. Só chegando lá, talvez, ao apresentar complicações graves que poderiam ter sido evitadas”, afirma a médica.

Os números do Sistema de Informações sobre mortalidade do SUS confirma essa afirmação e aponta que, de 2012 a 2021, 367 mulheres morreram após complicações em tentativa de aborto. No Brasil, como já se sabe, o aborto só é legalizado para situações específicas, mas, ainda assim, essa prática é uma realidade.

“De fato o aborto é um evento frequente na vida das mulheres e pessoas com capacidade de gestar, como foi demostrado na última Pesquisa Nacional do Aborto, com dados do ano 2021, em que uma a cada sete mulheres até os 40 anos já teve um aborto. Também foi relatado nessa pesquisa, em relação às versões anteriores, que houve uma queda na taxa de aborto e na taxa de hospitalização por aborto”, explica Romina.

Ela acrescenta que essa queda na taxa pode ser decorrente da subnotificação, devido à criminalização do aborto no país. “A queda na taxa de hospitalização por aborto pode talvez estar associada ao uso de métodos mais seguros para provocar esses abortos, como, por exemplo, o uso do misoprostol, uma medicação que, quando bem utilizada, é extremamente segura”, afirma Hamui.

Principais entraves

Para falar dos entraves que as mulheres enfrentam para realizar um aborto, Romina fala do que testemunha e vivencia no seu trabalho. “Na emergência, tem muitos casos de mulheres que chegam desesperadas por gravidezes indesejadas procurando ajuda ou que chegam, talvez já após terem elas mesmas iniciado o processo de abortamento, precisando finalizar esse processo dentro da maternidade”, conta. Ela acrescenta que essas gestantes que chegam aos serviços públicos de saúde, geralmente, são mulheres que estão em uma maior vulnerabilidade social.

“Essas pessoas, diante da decisão de interromper uma gravidez que, de forma alguma é limitada pela criminalização, acabam se expondo a métodos mais inseguros para conseguir essa interrupção, o que pode levar a desfechos de maior risco para sua saúde e a sua vida”, afirma a médica, que também é mestra em Saúde Coletiva.

A demora em buscar o serviço de saúde também pode influenciar nesses desfechos. Alguns fatores que podem levar a essa demora são a tomada de decisão, que envolve questões morais, religiosas e sociais; a dificuldade de acesso aos serviços. “Os retardos em oferecer um diagnóstico e tratamento adequado e oportuno estão relacionados com o racismo estrutural, com o preconceito moral e religioso dos profissionais de saúde em relação ao aborto. Nos casos de violência sexual, existem ainda serviços de aborto legal que exigem boletim de ocorrência ou autorização judicial, ou imposição de limite de idade gestacional para garantir o aborto legal. Tudo isso são barreiras sem qualquer justificativa legal”, explica a médica.

Atenção hospitalar

Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/SUS) indicam que entre os anos de 2012 a 2021, 66% das mulheres que morreram após falha na tentativa de aborto eram negras. Esse percentual considera apenas os casos em que a variável raça e cor foram preenchidas. Isso quer dizer que esse percentual ainda pode ser maior. Ou seja, os dados apontam que, embora o aborto seja uma experiência presente em todas as camadas sociais, as mulheres negras têm maior risco de um desfecho ruim.

Em sua pesquisa de mestrado, “Retardos na atenção hospitalar e complicações do aborto: um estudo de usuárias do sistema público de saúde no nordeste brasileiro”, a médica Romina Hamui aponta outros dados importantes.

“Após a admissão hospitalar, uma em cada cinco mulheres, que aguardaram mais de 10 horas até o esvaziamento uterino, apresentou como desfecho uma complicação grave; 60% a mais do que aquelas cujo intervalo de tempo foi inferior a 10 horas. E o fato dessas mulheres terem se declarado ‘pretas’ foi um fator associado a essa maior espera”, destaca a pesquisadora.

A médica correlaciona a demora na realização do procedimento com a ocorrência de complicações graves, inclusive em mulheres que chegaram às maternidades em boas condições de saúde. “O que reforça o papel dos retardos nos serviços de saúdes na evolução do quadro clínico dessas mulheres, trazendo como conclusão a importância da gente rever os modelos assistenciais, mesmo dentro do marco legal vigente. A necessidade de mudar a formação dos profissionais de saúde, não só em questões técnicas, mas numa perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e, claro, lutar pela mudança da legislação, já que a gente já viu que a criminalização não evita ocorrência de abortos, só faz com que eles se tornem um evento potencialmente perigoso para uma parcela da população”, declara.

Barreiras de acesso

Essas barreiras de acesso apontadas por Romina foram potencializadas durante a pandemia de Covid-19. É o que indica um estudo realizado pelo Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde (MUSA) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA, em conjunto com o Grupo Curumim – Gestação e Parto e o Ipas Brasil.

O trabalho acompanhou três unidades de saúde localizadas em cidades de grande porte do estado da Bahia. Os serviços foram criados a partir dos anos 2000 e estão abrigados em hospitais ou maternidades vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e que ofereceram o serviço de interrupção legal da gravidez durante os anos de 2020 e 2021. O perfil das pessoas atendidas por esses serviços é, predominantemente, de mulheres jovens e negras que sofreram violência sexual. O estupro é a principal causa de interrupções legais de gravidezes na Bahia e também no Brasil.

A pesquisa “Barreiras de acesso ao aborto legal na Bahia no período da pandemia da COVID-19: 2020 e 2021” apontou que há um número reduzido desses serviços no estado. Atualmente, além de Salvador e Camaçari, só há serviços de aborto legal nos municípios de Feira de Santana, Ribeira do Pombal, Vitória da Conquista e Porto Seguro.

A maioria desses serviços só atende os casos de gravidez resultante de estupro. A desinformação, a centralização dos serviços na capital, a pouca visibilidade dos hospitais e maternidades que abrigam esses serviços e o desconhecimento de direitos são algumas das barreiras identificadas na pesquisa.

A questão territorial, no entanto, é destacada por Paloma Silveira, doutora em Saúde Pública e professora, psicóloga e pesquisadora associada ao MUSA/ISC e ao LabEshu (UFPE), que participou da pesquisa. “As unidades que realizam o procedimento no estado estão localizadas na capital ou em grandes centros urbanos e isso se transforma em uma barreira de acesso às pessoas com capacidade de gestar, que residem no interior e precisam do serviço”, declara.

Paloma salienta que, embora tenham sido potencializadas no período pandêmico, essas dificuldades evidenciadas na pesquisa já existiam e seguem existindo. “Muitas pessoas desconhecem os serviços de aborto legal ou sequer sabem desse direito. Outra barreira relevante se refere à própria estrutura física dos hospitais onde esses serviços estão abrigados. As pessoas atendidas no aborto legal, muitas vezes, são obrigadas a dividir o mesmo ambiente com mulheres em trabalho de parto, puérperas que estão com seus recém-nascidos. Isso foi apontado como um ponto negativo, principalmente para o acolhimento”, afirma.

Uma ausência percebida na pesquisa foi a das pessoas LGBTQIAP+, o que, para a pesquisadora, evidencia as barreiras criadas pelo despreparo das equipes para lidar com a diversidade. “Não há relatos, por exemplo, de participação da população LGBTQIAP+, no estudo. Isso também é uma barreira. Uma barreira à diversidade de gênero e sexual relacionada a esse acesso ao serviço”, destaca.

Outro ponto dificultador refere-se aos limites gestacionais para a realização da interrupção da gravidez. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já recomendou que o limite de prazo gestacional para a realização do aborto nos serviços de saúde seja eliminado. A medida tem como objetivo garantir o acesso ao aborto para as pessoas que estejam no segundo trimestre de gestação e para aquelas que vivem em áreas remotas.

O estudo aponta também a presença da objeção de consciência como um entrave a mais ao acesso aos serviços legais. Se trata de convicção religiosa, política, ética ou moral do indivíduo usada pelos profissionais de saúde como justificativa para recusa em realizar o procedimento. Paloma Silveira aponta ainda o entrave da falta de atendimento humanizado nesses serviços em que profissionais de saúde não confiam nos relatos apresentados pelas mulheres vítimas de violência que buscam atendimento.

“A gente constatou uma formação insuficiente. Uma falta de sensibilização e capacitação desses profissionais sobre atenção ao aborto, o que contribui para a permanência de atendimento desumanizado e implica em sofrimento desnecessário para as pessoas com capacidade de gestar em um momento de grande fragilidade emocional”, declara Paloma.

A pesquisa identificou também alguns avanços nos serviços legais da Bahia, dentre eles avanço na celeridade de atendimento, a existência de equipes multiprofissionais nos serviços, com destaque para a atuação psico-social, uma maior divulgação dos serviços existentes na Bahia através do site da Sesab e a criação do Fórum Estadual sobre Aborto Legal na Bahia.

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