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Depois do laudo: famílias TEA se mobilizam por direitos e combate ao preconceito

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As histórias são semelhantes: pais, mães e cuidadores são chamados na escola após o professor identificar características que não combinam com a etapa de desenvolvimento da criança. Em casa, os pais já haviam percebido atrasos na fala, problemas de coordenação motora, desinteresse pelos colegas, ou outros pontos de atenção.

A partir daí, tem início uma temporada de visitas a profissionais de saúde de especialidades até então desconhecidas. São diversos exames, testes e avaliações até a chegada do laudo: Transtorno do Espectro Autista (TEA), um registro frio, destrinchado em números de CID e indicações para terapias, que diz pouco sobre quem realmente são as crianças autistas.

“Eu gosto de estudar, jogar videogame, ler e andar de caiaque”, conta Gustavo Vassoler, que tem 13 anos, mora em Guarapari (ES) e é uma criança dentro do espectro. “O mais desafiador para mim é viver em um mundo onde as pessoas não têm informação e não buscam informações sobre autismo.”

E é exatamente para ampliar essa compreensão que hoje (2) é comemorado o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, uma data para ajudar a quebrar preconceitos e estereótipos sobre o autismo ou, no termo atualizado, Transtorno do Espectro Autista (TEA). Trata-se de um distúrbio no desenvolvimento do cérebro que afeta a capacidade de relacionamento com pessoas e com o ambiente.

Estudos estimam que 1 em cada 58 crianças no mundo nasce dentro do espectro. Só no Brasil, o número de pessoas autistas chega a 2 milhões, segundo dados do Ministério da Saúde.

Mas os números também dizem pouco sobre as famílias autistas e os desafios e conquistas que elas alcançam no seu dia a dia, que vão de o uso correto dos talhares pelas crianças a aprovação de leis no Congresso Nacional garantindo direitos para autistas.

“Quando se fala em autismo a maioria dos profissionais ainda imagina casos severos, de pessoas que não falam e não comem, mas não é assim. O autismo é um espectro amplo”, pontua Emanuele Teixeira Vassoler, mãe do Gustavo e fundadora do Família TEA, um grupo do Espirito Santo que reúne pais de crianças dentro do espectro. “Um laudo não pode anular uma criança.”

Pesquisas recentes apontam que predisposições genética pode não ser principal responsável pelo autismo / Foto: Reprodução/TV Brasil

Entendendo o TEA

O Transtorno do Espectro Autista (TEA), que no passado era chamado apenas de “autismo”, engloba diferentes transtornos como: Autismo Infantil, Autismo de Alto Funcionamento, Autismo Atípico, Transtorno Global do Desenvolvimento, Transtorno Desintegrativo da Infância e Síndrome de Asperger.

As causas do TEA ainda não são totalmente conhecidas. Por muitos anos, as pesquisas científicas avaliaram predisposições genética, mas já há evidências de que fatores hereditários são responsáveis por somente metade do risco de desenvolver TEA. Os demais fatores estariam ligados às condições ambientais que impactam o feto, como estresse, infecções, exposição a substâncias tóxicas, complicações durante a gravidez e desequilíbrios metabólicos.

As características de comportamento, no entanto, são bastante divulgadas. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM5, as pessoas dentro do espectro podem apresentar dificuldades de comunicação e interação social, hipersensibilidade ao som, a luz e ao toque e padrões restritivos de comportamento – incluindo interesse fixo em alguns assuntos e movimentos repetitivos, em geral uma forma dos autistas reorganizem os pensamentos.

As crianças, mesmo bebês com poucos meses de vida, apresentam dificuldade para se comunicar, interagir socialmente, manter contato visual, imaginar e fazer expressões faciais e gestos, além de seletividade alimentar, manias, apego excessivo a rotina e hiperfoco.

É o caso do Théo Hiroshi Sizukusa de Carvalho, uma criança dentro do espectro, de 5 anos, que mora em Aparecida de Goiânia. “Ele tem hiperfoco em letras e números. Desde os dois anos, quando começou a soltar as primeiras palavras, ele adora repetir letras e números. Ele ama o alfabeto e já sabe escrever”, conta a bióloga, Patrícia Vieira Sizukusa, mãe do Théo. “Desde 7 meses ele já mostrava sinais de autismo: quando ele aprendia uma nova palavra, a repetia muitas vezes e dia seguinte não sabia mais. Também não atenda quando chamávamos. Quando fez um ano e três meses ele ainda não falava, o pediatra encaminhou para o neuro, que deu o diagnóstico.”

Essa, porém, é a história do Théo. Especialistas ressaltam que não há padrões quando se fala em crianças autistas: elas podem até partilhar dificuldades, mas de formas diferentes, com mais ou menos intensidade.

Essas particularidades foram agrupadas nos chamados “níveis de suporte”, uma escala que classifica o grau de auxílio a pessoa TEA precisa para realizar atividades. Quem tem grau 1 de suporte, por exemplo, apresenta prejuízos leves, que não necessariamente o impedirão de estudar, trabalhar e de manter relacionamentos com outras pessoas. Já quem tem grau 2 de suporte, terá menos independência. A maior escala é o grau de suporte 3, no qual a pessoa manifesta dificuldades mais severas e costuma precisar de apoio ao longo da vida.

Para além dos desafios, as pessoas TEA podem ter habilidades que chamam a atenção, como extrema facilidade para aprender algo novo, muita atenção aos detalhes, ótima memória e grande concentração em assuntos de seu interesse. Cada pessoa dentro do espectro apresenta um conjunto de sintomas, com características bastante particulares, que influenciam na forma como ela se relaciona, se expressa e se comporta.


Precisei ser outra mãe’

Encarar o diagnóstico não foi um processo simples para Patrícia, assim como para a grande maioria dos pais de crianças atípicas, que se deparam com medos, angústia, dúvidas, profissionais despreparados e o ainda grande preconceito existente.

“No começo foi bem difícil falar sobre o diagnóstico, porque eu sabia que a partir daquele momento eu teria que ser outra mãe. Ser uma mãe atípica é bem mais complicado”, conta. Entre os desafios, estão mudanças na rotina das famílias, que passam a dedicar parte de seus dias às terapias multidisciplinares, o método mais recomendado para estimular o desenvolvimento de crianças TEA.

A rotina pode incluir, por exemplo, psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional, além das consultas e acompanhamentos com médicos especialistas. Essas diferentes terapias associadas testam e exercitam as habilidades físicas, sociais, comunicativas e adaptativas das crianças, permitindo que elas ganhem mais autonomia e independência.

“O Théo toma medicação e faz terapias de terça e sexta, que o ajudam muito”, diz Patrícia. Essa, porém, não é a realidade de todas as famílias. Muitos pais e mães não conseguem acessar tratamentos para seus filhos na frequência necessária para estimular e desenvolver as crianças, nem pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nem por convênios médicos.

Desde 2012, Lei Berenice Piana institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e garante a elas os mesmos direitos das pessoas com deficiência no sistema público de saúde. Além disso, em outubro de 2021, o Senado aprovou um Projeto de Lei que amplia o atendimento aos autistas no SUS, que passou a oferecer atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com TEA, incluindo diagnóstico precoce e atendimento multiprofissional. A proposta foi feita por uma mãe de autista.

No mesmo ano, a Agência Nacional de Saúde (ANS) publicou uma resolução normativa que obriga os planos de saúde a oferecer, além das consultas ilimitadas com médicos e dentistas, sessões ilimitadas de fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional e fonoaudiologia. No entanto, a ANS não obriga o plano a ter profissionais capacitados em tratamentos específicos.

“As leis são maravilhosas, mas na prática as pessoas não são atendidas. Eu tenho plano de saúde e tenho uma dificuldade imensa de encontrar pessoas especializadas para terapias”, disse o presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil, Fernando Cotta, em audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara Federal, em 2021. “No Brasil nós temos algumas ilhas: lugares específicos e muito poucos, onde as pessoas são atendidas com respeito pelos órgãos públicos”.

Frente à dificuldade de conseguir no Espírito Santo a carga horária semanal de terapias indicadas para as crianças, que em alguns casos pode chegar a 48 horas, as mães e pais do grupo Família TEA firmaram parcerias com prefeituras capixabas e profissionais especializados, visando ampliar o atendimento. “Nossa intenção principal é divulgar informações sobre TEA. Essa é a nossa maior arma para brigar pelos direitos dos nossos filhos”, pontua Emanuele.

Hoje, as famílias integrantes têm acesso gratuito a 3 horas semanais de terapia funcional especial e aulas de caiaque e natação na praia, além do atendimento psicológico, em grupo, para os pais. “Uma criança dentro do espectro sem tratamento pode chegar a vida adulta com mais dificuldades e dependência, por que não se desenvolveu na infância”, pontua Gustavo.


Receber um diagnóstico de autismo não é simples, porém especialistas concordam que a aceitação da família é o primeiro passo para garantir o desenvolvimento pleno da criança e ajudar a combater preconceito fora de casa.

“Ninguém prepara a gente para ter um filho com deficiência. Quando você fica grávida pensa na cor dos olhos, do cabelo, no quarto, mas não se prepara para uma deficiência”, pontua Patrícia. “No caso do autismo é ainda mais difícil porque trata-se de um transtorno neurológico. O cérebro deles funciona diferente, mas na aparência não muda. Quando é algo que não se consegue ver é mais difícil de lidar. Você escuta coisas como: ‘não parece autista’, ‘tudo é autismo’, ‘isso é frescura’.

Olhares de reprovação, perguntas inconvenientes e reações desproporcionais ao comportamento das crianças. A maioria das mães autistas já vivenciaram situações como essa em seu dia a dia, como reflexo do preconceito que ainda existe contra as pessoas autistas, em especial as crianças.

“Existe muito preconceito, principalmente de adultos, que perguntam coisas como: ‘esse menino é assim mesmo?’ ou ‘ele vai bater nas outras crianças!’ e nem de longe é assim”, conta Patrícia. “Eu gosto de sair com o Théo, mesmo que ele faça escândalo e grite. Eu não ligo, não tenho vergonha de ter um filho autista, nem tenho vergonha de falar que ele é autista”.

Não há dados oficiais sobre casos de preconceito contra pessoas autistas no Brasil, porém são recorrentes notícias sobre casos de bullying e discriminação.

“A falta de adaptação leva a exclusão, a exclusão leva a invisibilidade e a invisibilidade não é mais uma opção para nós. Não vamos aceitar que nos tratem como se não fossemos capazes, porque nós somos”, pontua Gustavo. “O laudo muitas vezes anula o respeito. Quando você tem um laudo as pessoas te vêem como se você vivesse em um mundo à parte, mas a gente vive no mesmo muito que vocês e vamos frequentar parques, cinemas, restaurantes.”

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