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Desafios globais e vozes locais: biodiversidade, clima e justiça social no século 21

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Em setembro de 2024, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um novo alerta climático, expresso no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destacando o papel da ação humana no aumento de eventos climáticos extremos, como secas, enchentes e ondas de calor. Esses fenômenos afetam diretamente os povos indígenas brasileiros, que dependem de ecossistemas saudáveis para sua sobrevivência. A devastação de suas terras, seja pela mineração, desmatamento ou incêndios, intensificados pela crise climática, coloca em risco sua segurança alimentar e cultural.

Um exemplo é a seca dos rios que ameaça territórios amazônicos na tríplice fronteira Brasil, Peru e Colômbia, como podemos observar no baixo nível do Rio Solimões afetando a produção agrícola, a pesca e a locomoção dos povos da região.

Ao mesmo tempo que os eventos climáticos extremos afetam drasticamente a fronteira, acontece em Cali na Colômbia, entre os dias 21 de outubro e 1º de novembro de 2024, a Conferência das Partes (COP), órgão dirigente da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional adotado na Cúpula da Terra do Rio de Janeiro em 1992, também conhecida como ECO-92.

O objetivo do evento anual é estabelecer agendas, compromissos e marcos de ação para conservar a diversidade biológica e proporcionar o uso sustentável, bem como garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso dos recursos genéticos.

No ano de 2024, pela primeira vez na história, a Colômbia está sediando a 16ª edição da Conferência semestral sobre Biodiversidade. Cada uma destas conferências procura tomar medidas decisivas para a proteção da diversidade biológica no mundo. O lema “Paz com a Natureza”, adotado esse ano, apela à reflexão para melhorar a relação com o meio ambiente e para repensar um modelo econômico que não priorize a extração, a sobre-exploração e a contaminação da natureza.

A Amazônia sendo um dos últimos lugares a serem ocupados de fato por não-indígenas¹, possui ainda uma grande população de indígenas (de acordo com o Censo do IBGE de 2022, são 868 mil indígenas vivendo na Amazônia Legal, o que representa 3,3% da população total da região). O Amazonas é o estado brasileiro que concentra a maior população indígena do país, com 28,98%. Segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) existem mais de 100 grupos de indígenas isolados na Amazônia Brasileira, sendo 16 deles habitantes do Vale do Javari.

Os povos indígenas Amazônicos vêm sofrendo com as secas e estiagens das chuvas, e também com as queimadas, neste ano de 2024. De acordo com o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ), a área da Amazônia que foi consumida pelo fogo em 2024 ultrapassa 5,5 milhões de hectares e o Pantanal já perdeu 2,5 milhões de hectares, até agosto de 2024. Segundo a ONG WWF-Brasil, foram 53.620 focos de incêndio até agosto de 2024.

A seca que afeta a Amazônia tem, assim como as queimadas, impactado diretamente os povos indígenas e ribeirinhos, levando à dificuldades de obtenção de água e alimento, além do isolamento de comunidades devido à dificuldade de transporte que depende dos rios; bem como, a dificuldade na caça, pesca, produção agrícola e na falta de água potável. Em julho de 2024, 92% das terras indígenas da Amazônia Legal estavam em situação de seca, o que representa 358 das 388 reservas.

Se esse território que foi um dos últimos a serem ocupados se encontra dessa forma, o que diremos da situação dos povos indígenas do Cerrado, por exemplo, bioma que em 30 anos pode sofrer extinção e que está sendo gravemente afetado pelas queimadas de 2024?

Longe do território amazônico, mas dentre as muitas cidades que sofreram com os efeitos da fumaça das queimadas na Amazônia e no Cerrado durante os meses de agosto e setembro, a cidade do Rio de Janeiro, entre os dias 14 e 16 de novembro, irá sediar o encontro da Cúpula do G20 Social. O evento visa ampliar a participação social nas discussões dos 20 países mais ricos do mundo, sobre temas como fome, pobreza, sustentabilidade e governança global. O evento incluirá feiras temáticas, debates e atividades culturais, além de uma consulta pública para recomendações globais. Movimentos sociais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), integram o comitê organizador, dando visibilidade às lutas populares brasileiras. O documento final será encaminhado à Cúpula de Líderes do G20. O encontro da Cúpula do G20 Social no Rio de Janeiro, em um contexto de crises climáticas, representa uma oportunidade crucial para fortalecer a participação social em questões globais, em um momento em que a América Latina está sediando grandes eventos políticos do clima.

Em 2025, ano próximo, o Brasil sediará a COP30, que acontecerá em Belém do Pará, na região Amazônica, e que busca reforçar a posição do país como um ator global importante no combate às mudanças climáticas. O evento terá um enfoque inédito: discutir a crise climática diretamente na região que ainda é considerada o “pulmão do mundo”. Isso coloca as questões indígenas e ribeirinhas no centro das discussões, proporcionando visibilidade a essas populações, que enfrentam os piores impactos da destruição ambiental, como a perda de terras e recursos naturais vitais.

A combinação de todas essas conferências e alertas destaca a urgência de implementar soluções integradas que levem em consideração a biodiversidade, as populações locais e as mudanças climáticas. No Brasil, isso se reflete em um desafio constante: equilibrar a proteção da Amazônia e a inclusão dos povos indígenas com o desenvolvimento econômico sustentável.

O ano de 2024 também é o ano do centenário da antropóloga romena naturalizada brasileira Berta Gleizer Ribeiro, que foi uma das pioneiras na defesa dos povos indígenas e do meio ambiente no Brasil. Esposa do antropólogo e político Darcy Ribeiro, Berta foi muito mais que a principal colaboradora e interlocutora de seu marido, com uma carreira própria marcada por importantes contribuições para a  Antropologia, Ecologia e Museologia. Seu trabalho é notável por integrar conhecimentos científicos e saberes indígenas, buscando formas sustentáveis de manejo agrícola e hídrico na Amazônia. Suas pesquisas, livros e exposições revelam o impacto do conhecimento tradicional indígena para a sustentabilidade e preservação da floresta. A exposição e o livro Amazônia Urgente: cinco séculos de História e Ecologia são um marco da obra de Berta Ribeiro. Realizada em espaços como a estação Carioca do metrô do Rio de Janeiro, durante a ECO-92, e centros culturais em várias capitais brasileiras, a exposição abordou a complexidade ecológica da Amazônia e a história de sua ocupação humana. Através de uma linguagem acessível e multidisciplinar, Berta promoveu a conscientização sobre a necessidade de alternativas sustentáveis para a preservação da floresta, conectando Ecologia, História e Antropologia​.

Trinta e quatro anos depois do lançamento de Amazônia Urgente, seguimos discutindo em meio a esses eventos e crises globais, no século 21, a evidente e crescente urgência de ações que conciliem a preservação ambiental com a justiça social, como já defendia Berta na década de 1990. A COP16 na Colômbia e a futura COP30 no Brasil, ao lado de encontros como o G20 Social, reforçam que o futuro da biodiversidade e do clima depende de políticas que incorporem a voz de populações locais, especialmente as indígenas, que estão na linha de frente dos impactos climáticos. Como afirmou o jornalista, professor, antropólogo, historiador e doutor em literatura comparada, José Ribamar Bessa Freire no documentário Para Berta, com amorsobre a vida da antropóloga: “Berta está na COP!”

Tais eventos são oportunidades de promover soluções integradas para a biodiversidade e o clima, reconhecendo o papel central das populações indígenas. Berta Ribeiro, com sua visão interdisciplinar e defesa dos saberes indígenas, permanece uma referência essencial para o debate contemporâneo, mostrando que a sustentabilidade só será alcançada com o respeito aos povos originários e ao meio ambiente. Somente com cooperação internacional, pautada pela equidade e sustentabilidade, será possível mitigar a crise ambiental e promover um desenvolvimento mais justo para todos.

*Bianca Luiza Freire de Castro França é historiadora e doutora em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/FGV-RJ). Atualmente, pesquisa sobre História da Ciência voltada para a Antropologia Ecológica brasileira no século 20, História Ambiental e do Antropoceno e os impactos ambientais da cultura dos indígenas amazônicos, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

1 – A ocupação europeia na Amazônia começa no século 16. Grande parte do que é conhecido hoje por Amazônia pertencia aos espanhóis, na divisão do Tratado de Tordesilhas, em 1494. Porém, as primeiras expedições à região começaram no século 16. Entre o século 17 e o século 19, os portugueses ocuparam a região Amazônica utilizando estratégias de missões religiosas, política pombalina e fortalezas. No final do século 19, com a Revolução Industrial, houve um grande “boom” da exploração da borracha na Amazônia brasileira. Centenas de nordestinos migraram para a região para trabalhar nos seringais. Já no século 20, durante o regime militar, na década de 1970, a construção da rodovia Transamazônica deu início ao desmatamento da área como conhecemos hoje. Durante o regime militar também foi realizada a Operação Amazônia, que pode ser resumida como uma operação conjunta entre o Governo Federal, os Governos Estadual e Municipal para “desenvolver” a região. (Ver: RIBEIRO, Berta G. Amazônia Urgente: Cinco séculos de história e ecologia. Editora Itatiaia/Edusp, 1990)

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