Ana Caroline Marques, contratada pelo Programa Médicos pelo Brasil, é a única médica da UBS de Auaris, e relata falta de insumos básicos, como esparadrapo, e dependência de doações
Como é a estrutura da unidade de saúde onde os indígenas são atendidos?
Nossa unidade em Auaris é dividida em três setores: um consultório, uma área de internação e observação e a casa dos funcionários, onde ficamos pelo período de 15 a 30 dias. Os pacientes que precisam ficar internados ou sob observação — o que acontece muito, por não conseguirem tomar o remédio sozinhos ou por estarem fragilizados e não conseguirem voltar andando — ficam aglomerados na UBS. Na maioria das vezes, são duas pessoas por rede.
UBS Auaris, na terra indígena Ianomâmi
Apenas com uma médica, a unidade básica chega a atender cem indígenas por dia
Costuma faltar medicamentos ou material?
Sim. Faltam desde medicações simples, como sulfato ferroso, dipirona, paracetamol e soro de reidratação oral, a remédios para casos mais graves, como soros antiofídicos, adrenalina, antibióticos, endovenosa e soro fisiológicos. Raramente temos esparadrapos, ataduras, luvas e equipo (aparelho usado para fornecimento de soro aos pacientes).
O que vocês fazem na falta de remédio?
Tem vezes que eu compro do meu próprio dinheiro e levo. A equipe se ajuda. Conseguimos bastante doação de colegas da saúde. Mas nem sempre há o que fazer. Os casos vão desde desnutrição a insuficiências respiratórias graves.
Você falou que os pacientes ficam aglomerados na UBS. A equipe consegue atender à demanda?
Não. Houve momentos em que eu estava apenas com três técnicos e um guarda de endemias. Em um cenário assim, não consigo nem fazer o mínimo para oferecer uma assistência adequada. Hoje em dia, trabalho com uma equipe composta por enfermeiro, entre quatro e cinco técnicos de enfermagem e dois guardas de endemias. De médico, só tem eu mesma. No tempo em que ficamos no polo (de 15 a 30 dias), trabalhamos quase que o dia todo. Temos a rotina de atendimento geral das 8h às 12h e das 14h às 18h. Mas se há alguma urgência, precisamos estar disponíveis.
Qual o caso que mais te marcou desde que chegou à Terra Indígena Yanomami?
Nossa, são tantos casos críticos. Mas um adolescente de 14 anos me marcou. Vou chamar de VS. VS veio de uma comunidade Koromatiu, onde a malária, infelizmente, acometeu mais de 50% da população, causando a morte, inclusive, do líder da comunidade. Em 26 de dezembro, recebemos um mensageiro relatando que lá havia vários doentes que não conseguiam nem caminhar. Devido à distância, era necessário fazer o resgate de helicóptero, mas não havia nenhum disponível ao solicitarmos. Só conseguimos realizar o resgate dia 4 de janeiro. Quando os indígenas chegaram, ao menos quatro estavam em estado crítico: desidratados, anêmicos e famintos. Ao examinar VS, a primeira coisa que ele me pediu foi comida. Ele me contou que não se alimentava havia dias. Seus lábios estavam rachados, sua pele seca e pálida e seu pulso, fraco. Após cuidados iniciais de hidratação, ele apresentou uma melhora discreta. Mas precisou ser transferido para a unidade de terapia intensiva de um hospital em Boa Vista, porque o quadro era muito grave. Ao contrário de muitas outras, no entanto, essa história teve um final feliz. Fiquei sabendo que ele teve alta no dia 10 e está agora na Casa de Apoio ao Indígena.
A unidade em que você trabalha fica longe das comunidades indígenas?
Tem comunidades que ficam de 20 a 40 minutos caminhando, e outras a que vamos de barco. Destas, há uma que fica a 30 minutos de barco, outra a 40 minutos e uma ainda mais longe. Quando temos barco disponível, vamos realizar consultas gerais. Mas não é fácil conseguir. Temos de pedir para o Exército ou para alguém da comunidade emprestar, porque o barco do Distrito Sanitário sempre quebra.
Não há equipes para limpeza e preparação de alimentos?
Não. Tudo somos nós que fazemos. Temos escala para limpar e cozinhar. Nos dividimos para preparar o café e o almoço dos pacientes e funcionários. Todos os dias, um funcionário tem a função de cozinheiro.
Na sexta-feira, o Ministério da Saúde decretou estado de emergência em saúde pública. Ontem, enviou reforços para o território. Como você avalia as medidas que foram tomadas?
Vejo com bons olhos, mas as estratégias precisam ser pensadas também como medidas de longo prazo. O cenário não se resolve apenas com ações emergenciais, porque elas têm prazo para acabar. Minha expectativa é que o governo desenhe um plano estruturado de atenção diferenciado para a saúde ianomâmi.