A falta de governança adequada e de articulação entre diferentes órgãos de governo é um problema comum detectado em diferentes políticas públicas com foco na erradicação da pobreza e na redução de desigualdades, afirma o TCU (Tribunal de Contas da União).
O órgão enviou ao Congresso Nacional a 7ª edição do Relatório de Fiscalizações em Políticas e Programas de Governo 2023, que faz um amplo diagnóstico sobre programas como Auxílio Brasil (agora substituído pelo Bolsa Família), PNI (Programa Nacional de Imunizações), política de cotas nas universidades e promoção do saneamento básico.
Um dos casos mais emblemáticos da falta de sinergia entre estruturas de governo é a avaliação integrada de dados, que explora bases de informação mantidas pela própria administração pública.
Os auditores fizeram uma análise conjunta e rastrearam alguns sinais de alerta e possíveis ineficiências de políticas.
A partir desse trabalho, por exemplo, o TCU identificou que R$ 1 em cada R$ 4 emprestados pelo Banco do Nordeste pode gerar inadimplência. O valor total sob risco soma R$ 10,5 bilhões, com possíveis danos aos cofres da instituição ou do FNE (Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste).
O tribunal também identificou, a partir do cruzamento de dados, o uso de R$ 1,235 bilhão do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) para pagar pensões e aposentadorias de 31,5 mil agentes públicos, algo vedado pela Constituição.
Outro achado foram as mais de 5.000 contas bancárias de municípios sem nenhum crédito do programa de apoio ao transporte escolar, indicando um vácuo indevido na política pública.
A secretária-geral de Controle Externo do TCU, Ana Paula Sampaio, disse à Folha que o documento aponta “falhas sistêmicas” do Executivo, que devem ser monitoradas e corrigidas para que haja maior eficiência, eficácia e efetividade na aplicação dos recursos públicos.
As auditorias avaliam diferentes períodos das políticas, em um indicativo de que os problemas perpassam diferentes administrações públicas e estão enraizados nos órgãos.
“O grande papel deste documento é apontar o problema para o Congresso, as falhas nas políticas públicas que podem trazer um impacto muito grande na vida do cidadão”, afirma Sampaio.
Segundo ela, há falta de diálogo e articulação até mesmo em políticas transversais, que envolvem diferentes ministérios e esferas de governo (federal, estadual e municipal).
O presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, afirma que o relatório contribui para jogar luz sobre possibilidades de otimização no uso de recursos públicos e não representa uma crítica a um governo específico, mas sim uma oportunidade de aprimoramentos.
“O que o relatório revela é um problema crônico do Brasil, que perpassa diversos governos, que é a falta de governança, metas e critérios para medir a eficiência das políticas públicas. Por isso, o TCU entrega esse relatório ao Congresso Nacional como contribuição para um debate inadiável”, diz.
Em outra frente, o TCU chama a atenção para a possível inclusão indevida de 3,5 milhões de famílias no Auxílio Brasil, agora substituído pelo novo Bolsa Família.
A explicação provável é a divisão artificial das famílias no Cadastro Único, dado que o desenho do programa (com um mínimo de R$ 600 por família) incentivava o registro como unipessoal, categoria que cresceu vertiginosamente entre o fim de 2021 e 2022.
O resultado era uma distorção, com famílias menores recebendo um valor per capita superior àquelas com maior número de integrantes, geralmente mais afligidas pela pobreza.
Esse é um problema que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começou a atacar a partir da reformulação do programa social. O petista manteve o mínimo de R$ 600, mas criou parcelas adicionais para crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes. Ainda assim, instituições como o Banco Mundial recomendam um passo além, com o fim do piso de R$ 600 por família.
Em outro caso elencado no relatório, o tribunal aponta uma falta de direcionamento mais efetivo da lei de cotas para ingresso nas universidades públicas, vigente desde 2012.
Pela norma, as instituições federais de educação superior devem reservar 50% das vagas para cursos de graduação a alunos que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas.
Desse total, metade será destinada a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo por pessoa.
O TCU constatou, porém, que 87,7% dos alunos de escolas públicas têm renda familiar per capita inferior a um salário mínimo, ou seja, praticamente todos os estudantes se enquadram no critério da subcota.
“Isso faz com que seja um critério que exclui, que deixa essa população que precisaria entrar pelo critério da renda com um nível de concorrência muito alto. É quase como não ter reserva de cotas, e isso é um achado importante”, afirma Sampaio.
Outro problema é que o aluno precisa decidir previamente em qual cota pretende concorrer, por renda ou por raça, antes mesmo de saber sua nota. Se um estudante obtém nota suficiente para ser aprovado em uma modalidade, mas escolheu outra mais disputada na qual foi desclassificado, não há como mudar de uma para outra.
A sugestão do TCU é que esses mecanismos sejam aprimorados. Outra recomendação da corte é uma melhor articulação da política de cotas com os programas de assistência escolar, que são importantes para garantir a permanência e a conclusão do curso pelo estudante que ingressou pelo sistema de cotas.
O tribunal ainda apontou uma falha grave de governança: a inoperância do Cisb (Comitê Interministerial de Saneamento Básico), previsto a partir do novo marco do saneamento e cuja atribuição inclui a coordenação, integração, articulação e avaliação da gestão do Plano Nacional de Saneamento Básico.
O comitê realizou apenas uma reunião desde sua criação, na qual aprovou seu regimento interno. “A inatividade do órgão, além de impossibilitar os alcances de seu objetivo, descumpriu a previsão de publicação do relatório anual de monitoramento e de avaliação da alocação de recursos da política federal de saneamento básico”, diz o relatório.
O tribunal ainda avaliou, na frente da saúde, o PNI. Segundo a corte de contas, apesar do histórico bem-sucedido do programa de imunização, as coberturas das principais vacinas estão caindo em todas as regiões do Brasil desde 2016. A situação amplia o risco de surtos, levando a internações, sequelas e mortes, sobrecarregando o SUS (Sistema Único de Saúde).