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O cinema brasileiro ainda está aqui

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O assunto da noite de domingo e deste início de semana foi e está sendo a vitória de Fernanda Torres como melhor atriz de drama no Globo de Ouro, premiação dos críticos estrangeiros de Hollywood e considerada uma das prévias do Oscar. Sim, 25 anos após sua mãe, Fernanda Montenegro, ter sido indicada para o Oscar de melhor atriz por “Central do Brasil” (com chances reais de vitória à época) outra atriz brasileira pode ser indicada para o prêmio máximo da indústria de cinema, pela atuação em “Ainda estou aqui”.

Para além do simbolismo do quarto de século que separa os êxitos de mãe e filha e do diretor dos filmes ser o mesmo, Walter Salles, há outros fatos simbólicos e históricos: Fernanda Torres interpreta no filme Eunice Paiva, mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro homônimo que deu origem ao longa. Eunice era casada com o deputado Rubens Paiva, que foi levado pela ditadura militar vigente para interrogatório e nunca mais voltou para casa. Na busca pela verdade- bem dolorosa – Eunice descobre que Rubens foi morto e enterrado, tendo o corpo sido desenterrado até ter seus restos jogados ao mar no Rio de Janeiro.Na junção filme-livro-temática há um fator ainda político: a obra aborda a ditadura militar e seus efeitos em um momento histórico em que a democracia vem sido constantemente ameaçada no Brasil e mesmo no Mundo.

Mas “Ainda estou aqui” carrega na bagagem do seu sucesso nacional (mais de 3 milhões de espectadores) e internacional (premiado em Veneza e Globo de Ouro e na antessala do Oscar) um simbolismo a mais: de consolidar a retomada e consolidação do cinema brasileiro após (mais) uma tentativa de aniquilação por parte dos poderosos de plantão.

Historicamente, em um país cheio de oscilações políticas e rompantes golpistas (uns bem sucedidos, outros não), o cinema nacional também vive numa montanha russa. Ao contrário de países como EUA, Reino Unido e França, jamais conseguiu desenvolver uma indústria cinematográfica forte. Atá tentou, com as companhias Atlântida e Vera Cruz, fundadas nos anos 1940, que no formato dos grandes estúdios de Hollywood, produziram e lançaram filmes de entretenimento e também de arte (ou autorais) atingindo grande sucesso (a Atlântida produziu 66 filmes de 1941 a 1966).

Apesar das circunstâncias econômicas que levaram ao colapso dos grandes estúdios, os ventos de progresso e desenvolvimento do governo (1956 a 1961) de Juscelino Kubitschek (apelidado de presidente Bossa-nova, em menção ao estilo musical que caracteriza a leveza daqueles tempos) foram intensos para o cinema brasileiro. É deste tempo obras primas como “Rio, 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos. de 1955, “Vidas secas”, 1961, também de Nelson; “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, 1962, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, maior conquista da história do cinema nacional e “Deus e o diabo na terra do sol”, de Gláuber Rocha, lançado em 1964 mas roteirizado e filmado entre 1962 e 1963, ainda nos anos JK e Jango.

Por falar em 1964, a ditadura militar foi um estorvo para o cinema brasileiro. A sucessão de AIs e da censura levou gênios como Gláuber ao exílio, e o surgimento da Embrafilme, criada pela junta de ministros militares em 1969, na verdade serviu para apoiar um formato de cinema sem questionamentos e que, paradoxalmente, estimulou o surgimento das chamadas pornochanchadas, já que erotismo machista e misógino nunca foi problema para o conservadorismo. O fim do regime militar, em 1984, deu espaço para filmes que denunciavam o período, como o forte “Pra frente Brasil”, de Roberto Farias.

A eleição de Fernando Collor de Mello em 1989 piorou o que estava ruim, e após os desgastes ocorridos no período dos militares, e a perda de espaço que marca a década de 1980, a Embrafilme foi extinta em março de 1990. O governo Collor menosprezou de tal forma a indústria cinematográfica que praticamente não foram produzidas longas nacionais naquele período. O marco do fim deste pesadelo e a (nova) retomada do cinema nacional veio com “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, estreia de Carla Camurati na direção, de 1995, já no governo FHC, embora filmado durante a era Itamar Franco.
Poucos anos depois o Brasil concorreria ao Oscar de filme estrangeiro com “Quatrilho” e “O que é isso, companheiro?” e voltou lentamente ao cenário nacional. Os governos Lula e Dilma (entre 2003 e 2016) possibilitaram não apenas a retomada da produção nacional como novas narrativas e possibilidades.

Mas aí, novo golpe (ops); Michel Temer assume o governo após o impeachment de Dilma e extermina o Ministério da Cultura. Iniciando também boicote a cineastas que denunciavam a situação, como aconteceu com os ataques a Kléber Mendonça Filho, que brilhou em Cannes com “Aquarius” em 2016 mas foi boicotado na escolha do representante brasileiro dso Oscar. Mais uma vez a produção cai e o cinema nacional se limiuta a filmes como as comédias de entretenimento da Globo Filmes.

A partir de 2019, com o governo Bolsonaro,. a perseguição ao cinema (como à cultura em geral) passou a ser institucional e assumida. Curiosamente no mesmo 2019 outro filme de Kléber, “Bacurau” não apenas é premiado em Cannes como simboliza sentimentos e sensações de artista e parte da população naqueles tempos com seu combo de violência e resistência.

Em 2023, o Governo Lula ressuscita o Ministério da Cultura, com a cantora Margareth Menezes à frente da pasta, e embora longe do ideal, o apoio ao cinema não apenas como indústria mas à construção de novas narrativas, possibilitou filmes como “Marte Um” e retomada do cinema pernambucano e cearense. Leis de cota de tela estarem sendo discutidas também é algo salutar. Nesse cenário, um filme como “Ainda estou aqui”, drama de temática delicada (e mesmo incômoda, embora necessária) ser sucesso de bilheteria e de crítica e ganhar prêmios internacionais, é um trunfo. E olha que entre este 2025 e 2026 teremos o lançamento de “O agente secreto”, de Kléber Mendonça, com Wagner Moura, também sobre ditadura militar e como ela afeta as pessoas e famílias. Felizmente o cinema brasileiro ainda está aqui. E que continue, cada vez mais prestigiado e produtivo.

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