Em 2011, eu e um grande amigo resolvemos produzir textos intexrextualizados a partir do que o outro escrevia. Trago hoje esse intertexto memória escrito por Matheus com a mesma temática de outro texto produzido por mim – “A LOBA”. São ideias compartilhadas entre dois amigos que se conhecem deveras e que se transformam em literatura. Espero que se deleitem com essa brincadeira. Pois era assim que estávamos: adorando a experiência.
Chovia ininterruptamente no Cerrado
A noite estava alta e perigosa
Dentro do meu carro passava uma música antiga
Lembrei das histórias do meu avô quando falava do seu pai que fora cangaceiro na Serra de Teixeira (limites da Paraíba), das onças e raposas, tatus e guaxinins
De repente, a passos lentos como quem desfila, atravessou o asfalto um lobo guará
Altivo, Esbelto, Imponente, Orgulhoso, Unicórnico
Olhando para frente como um General de fogo
Tinha treze anos
Evitou-me olhar enquanto eu paralisado e hirto fragmentava-me, esvaziava-me de mim
Atravessara o meu território atraindo-me para o seu
Estava chovendo – e quando chove, os mistérios desse lugar atravessam o asfalto e a nossa existência
Sacis, fadas, óvnis, curupiras, lobisomens, boitatás, caiporas e guarás
Todos saem da mata em busca das suas presas
Aquele lobo me caçou, me alcançou, me atingiu com suas flechas escarlates
Seu olhar eloquente uivou para mim
Uivo do bruxo que quer se acasalar
Ele queria se casar
Atraiu-me para sua casa
Pro seu lar
Desejei sua matilha
Persegui a sua trilha
Abandonei o carro, os livros e a mochila
O lobo, não sei dizer, mas aquele lobo era maior do que eu
Pesava trinta quilos
Suas pegadas eram de gente grande, nobre e elegante, que tem pele parda avermelhada
E que patas!!!
Eram Botas negras da América e engraxadas
De dar inveja a qualquer raposa, até as do ártico
Seu rosto, peraí
Falta-lhe o olho esquerdo
O olho da sorte e também da fraqueza
Aquele olho era silêncio encarcerado
Arrancaram
Mas alguma coisa lá dentro ainda me olha
E uiva chorando
O uivo sai do olho que falta
O uivo sai da falta que olha
O uivo é um buraco negro por dentro do pelo vermelho
Um hiato
Uma ausência
Reclamava minha presença
Num dialeto velho que eu compreendia
Era tupi-guarani
Ni era seu nome
Há anos atrás possuía outro nome, mas com o passar do tempo, devido a falta do olho, as sílabas foram caindo.
Viera da Zona da Mata nordestina
Soubera que eu tinha vindo para cá
Estava me procurando, procurando meu olho esquerdo
Contou-me o que aconteceu, entre uivos e lágrimas de um olho só
Nasceu no mês de junho, no dia treze, dia de Santo Antônio
Sorriu com jeito devoto
Falou também de algumas histórias da Grécia, de Roma, de Amúlio, da Reia Silvia, de Rômulo e Remo e da Loba que atraída pelo choro dos recém-nascidos, foi ao seu encontro oferecer suas tetas e o seu carinho.
Às vezes dava uma pausa na narrativa
Introspectivando-me
Ele veio ao meu encontro
E eu precisava oferecer as minhas tetas
Mas não eram tetas que ele queria
O que ele queria me assusta
É coisa que nenhum tipo de gente pode dar
Tentei puxar assunto interrompendo sua pausa
Eu estava dentro de uma geladeira enquanto ele em chamas se abrasava – eu era sua esperança de inteireza.
Todo o meu ser cansado tremia em negrito e itálico
Meu medo escorria num (dis)curso indireto livre
Eu era a Lira dos seus Treze Anos
Seu Macário
E as Pausas?
Eram pausas eternas
Uma quase-coisa-não-dita
Seu jeito de olhar hipnotizou-me
Um vulcão em erupção se aproximava
Naquele silêncio havia uma lava incandescente
Pôs suas Botas negras e engraxadas sobre mim como se dissesse: acostuma-te a lama que te espera
Senti uma inevitável necessidade de também ser fera
Mas fiquei calado, eu e minha lira pisada
Começou a arrancar minha íris, minhas córneas, meu globo ocular
Meu jeito esquerdo de ver
Lembro que a noite emagreceu e rosnou para nós
Desmaiei
Lambeu-me todo
Sua língua era do fogo, deliciosamente parda e doce
Uma língua lusa: de Camões, de Quental, de Pessssssssssssssssssssoa
Me vestia de escuro e roçava sobre mim
(…)
Não nos olhávamos
Um evitava o olhar do outro para não correr o risco de nos entendermos, para que o destino se cumprisse, seja ele o que, qual ou quem fosse
Quando abri os olhos
Estava cativo sem pátria, sem terra, sem sinagoga, sem culto, sem rima, sem nada
Naquele lugar arrebentou-se o meu modo de viver, enquanto ele levava o meu olho esquerdo, as lembranças, as medidas matemáticas, as mitocôndrias e as lagrimas da pecadora
Quando abri os olhos perdeu-se na carne fria
Não eram os meus
Dei um grito
O grito – de Munch – numa versão surrealista – bem Dalí
Quando abri os olhos
Vi a coluna partida de Frida
E os Khalos?
Só tinha um
Não sei como, não tinha sangue, nem tinha dor, apenas gozo
Ele pôs no meu rosto o seu olho
Foi embora de costas, olhando a noite com meus olhos.
Noite do dia 30 de novembro de 2011.
Matheus Ferreira.