Aconteceu na noite desta segunda-feira (14) a roda de conversa “Desafios atuais das pretas no poder”, em alusão ao Julho das Pretas. Com o auditório lotado, o evento que recebeu pela primeira vez no estado a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, foi marcado pelo ineditismo de mulheres negras no poder.
Mulheres de diversos movimentos sociais compartilharam o palco com a ministra e as deputadas federais Daiana Santos (PCdoB), Reginete Bispo e Denise Pessôa, ambas do PT, e das deputadas estaduais Bruna Rodrigues (PCdoB) e Laura Sito (PT). As deputadas federais e estaduais são as primeiras mulheres negras a ocupar a Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa. Assim como Anielle a se tornar dirigente do primeiro Ministério da Igualdade Racial.
A deputada Daiana Santos iniciou sua fala destacando o momento histórico simbolizado pela roda de conversa. Conforme destacou a parlamentar, Anielle é ministra do primeiro Ministério da Igualdade Racial. No governo de Lula, a pasta era então uma secretaria. Ela contou sobre o primeiro encontro com Anielle, quando a deputada fez parte de uma formação de mulheres negras, no curso Dandaras, do Instituto Akanni.
“Nós nunca fomos colocados como parte principal do protagonismo da história. O Brasil é um país que teve a sua pós-abolição, há cento e trinta e cinco anos, de forma abrupta, sem nenhuma política que pudesse fomentar o mínimo de dignidade para o nosso povo. Isso reflete até hoje, nos indicadores da saúde, da violência, da habitação, do desemprego. Isso reflete em absolutamente tudo o que é político. Hoje temos uma gama de nosso povo, de pessoas que se colocam à disposição para essa projeção política, que fazem destes espaços, espaços de construção coletiva”, frisou.
Conforme sublinhou a parlamentar, quando se fomenta essa participação a realidade muda, muda toda uma estrutura, modifica e a mobiliza. “Todas essas mulheres que até então são vistas unicamente como base de uma estrutura social, agora são protagonistas do seu futuro. Agora movimentam e mobilizam para que outras possam cada vez mais avançar. Que a gente possa cada vez mais avançar, consciente do que nós somos, e criando possibilidades para todos, todas e todes nós.”
A deputada estadual Bruna Rodrigues também iniciou sua intervenção falando do momento em se encontrou com a Marielle Franco. “Eu nunca me entendi como uma mulher feminista. Eu sempre falava sobre essa distância que eu vi entre nós. De mulheres como nós, que estão no cotidiano das nossas comunidades lutando para não fecharem as escolas, para não matar os nossos filhos, para ter o mínimo de dignidade que é ter a comida no prato. E pela primeira vez, no Congresso da União Nacional dos Estudantes, eu vi a Marielle falando sobre o feminismo do cotidiano, esse que precisava falar sobre a vaga na creche, que precisava falar do saneamento, discutir a polícia, que precisava falar de juventude viva. E pela primeira vez eu disse, ó, eu tenho um espacinho aí dentro”, recordou a parlamentar.
Bruna comentou também sobre a reunião que tiveram com o governador Eduardo Leite (PSDB). De acordo com ela a reunião foi positiva pois foi a primeira vez que conseguir se reunir com ele. “Nós festejamos ter a nossa ministra, que tem a nossa cara, que carrega as nossas histórias e e que, acima de tudo, pega firme na nossa mão. Para nós, que vivemos nesse estado, um dos mais segregados do país, é sem dúvida nenhuma, um grande feito, e tu representa esse sentimento da reforma do estado. Esse estado que está aí não nos representa. Que a gente possa falar de um estado, num futuro bem próximo, onde a nossa juventude tenha vida, tenha educação, tenha alimentação e tenha direito de viver com dignidade”, afirmou.
As violências têm várias formas e nós resistimos
“Nós que estamos aqui, somos parte de um grande movimento nacional de ampliação da representação das mulheres negras. Não somente da nossa representação institucional, mas de amplificação da nossa pauta, da nossa agenda, contra o racismo, contra a violência, pelo nosso bem viver. Nossos passos são firmes, eles vêm de muito longe”, afirmou a deputada Laura Sito.
Assim como apontado por Bruna, Laura também destacou a segregação racial que se vive no Rio Grande do Sul. Segundo expôs a parlamentar, 79% das abordagens policiais são contra jovens negros. “É uma região onde as mães negras não dormem. E aqui está o coletivo das mães pretas, onde nós temos se nossos filhos quando saem de casa vão voltar. Um estado onde os corpos colocados em situação análoga à escravidão são corpos negros. 75% dos corpos resgatados nesse estado são corpos negros. Queremos aqui fortalecer uma agenda política para dar luz a nossa luta primária que é pela sobrevivência.”
A deputada também pontuou que depois de 2020, quando formou-se a primeira bancada negra da capital, as cenas de violência política ainda persistem. “As violências vêm de várias formas, e nós resistimos, resistimos a todas elas. Estamos aqui reafirmando o nosso compromisso junto aos movimentos sociais, da luta pela superação racismo e pela afirmação estratégica da luta das mulheres negras, que são a haste desta sociedade.”
Na sequência foi a vez da deputada federal Denise Pessôa, que lembrou sobre a questão do trabalho análogo a escravidão deflagrado em Bento Gonçalves, região onde mora a parlamentar, e do subsequente debates racistas na Câmara de Caxias do Sul, onde ela foi vereadora. “Eu sei o quanto é complexo e difícil as mulheres pretas chegarem no poder e permanecer no poder. Ainda é constante os casos de violência política de gênero, e o quanto se sofre dentro dos espaços de parlamento.”
A parlamentar também falou da aprovação da lei de cotas e dos avanços que vem sendo conquistados. “Comemoramos essa vitória. Temos avançado, avançado com a nossa ministra, nas políticas públicas. Foi feito o primeiro Censo Quilombola que identificou os quilombolas do Brasil. Temos no RS mais 17 mil quilombolas e isso mostra a necessidade de pensarmos políticas públicas. Nós temos o maior número de quilombos urbanos do Brasil. Precisamos olhar para essa política.”
Ela também chamou atenção para a questão do racismo religioso, da morte dos jovens negros, das mulheres que sofrem violência doméstica e que são assassinadas. “Quantas mulheres negras são mães solos no Brasil e a gente precisa pensar políticas públicas. É por todas nós, pelo que a gente representa, por quem veio antes, que nós estamos ocupando espaço hoje. Precisamos avançar ocupando os espaços políticos, mas precisamos estar vivas. Seguimos juntas juntos, juntas construindo um Brasil antirracista, que seja feminista e que tenha o nosso espaço nos espaços de poder. Não podemos mais ter política sobre nós sem nós.”
Nossos passos vem de longe
“É uma alegria enorme estar aqui nesse momento, junto com um círculo de mulheres negras de luta, e que dá aquele verdadeiro retrato de que nós não estamos sozinhas, e que uma fortalece a outra”, destacou a deputada federal Reginete Bispo.
Ela ressaltou que há mobilização e discussão de um projeto político para o povo negro vem de longe, citando os anos 90, quando o país recém tinha saído da ditadura militar. “Nossas experiências eram muito estreitas, porque não tínhamos vivido uma democracia efetiva. Mas nosso projeto sempre esteve pronto. Quando a gente olha as mulheres que vieram antes de nós e que fizeram a luta contra a escravidão, teve Dandara, Tereza de Benguela. Ou seja, uma luta permanente, já naquele período, as mulheres lutavam por justiça e por liberdade nesse país”, comentou.
Reginete também citou as intelectuais Lélia González, Beatriz Nascimento, Beatriz Santos, Sandrali Bueno, Jurema Jurema Werneck. “Esse projeto está desenhado desde sempre. E o projeto que nós construímos, nós mulheres negras, foi esse projeto que garantiu que nós estivéssemos aqui hoje. Foi esse projeto que garantiu que as nossas famílias, que as nossas comunidades, que a nossa cultura sobrevivesse. Por isso nós estamos aqui, por isso a gente consegue hoje ter o Ministério da Igualdade Racial, o Ministério dos Povos Indígenas. Conseguimos ter diversas ministras negras e também por isso a gente consegue ter uma bancada de mulheres negras aqui na Assembleia Legislativa e na Câmara dos Deputados. A gente vive um momento histórico, um momento que a gente conseguiu romper aquele espaço que nos colocava sempre como denunciante.”