O neurocientista, biólogo e professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Ice-UFRN) Sidarta Ribeiro conquistou na justiça o direito de plantar maconha para o seu próprio uso medicinal. A batalha judicial foi iniciada em 2021, mas ele só obteve o salvo-conduto no último mês de novembro.
Sidarta faz uso terapêutico da planta para ansiedade e dores articulares crônicas há mais de quatro anos. Em publicação nas redes sociais após a conquista da autorização para cultivar a cannabis medicinal ele contou que resolveu “sair do armário” com a publicação do seu livro “As Flores do Bem: A Ciência e a História da Libertação da Maconha”, lançado em 2023 pela editora Fósforo.
No livro, além de combater a desinformação sobre a maconha, ele relata a trajetória da luta para conquistar o direito de cultivar a planta, que também é usada recreativamente e em rituais religiosos.
“Solicitei e obtive em 2021 um habeas corpus preventivo da Justiça Federal do Rio Grande do Norte. A sentença foi derrubada em segunda instância, mas nos articulamos com a Rede Reforma para recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF). Finalmente, em julho de 2023, obtivemos uma decisão favorável na terceira instância”, conta ele em trecho do livro.
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com um novo recurso para derrubar a decisão, mais o pedido foi rejeitado pelo STJ em setembro de 2024, reestabelecendo em definitivo a autorização legal para que o neurocientista cultive a planta e extraia o óleo de cannabis, além de poder transportá-la, inclusive suas sementes, em todo o território nacional. O habeas corpus conquistado é vitalício, não necessitando ser renovado.
“Me somo ao pequeno grupo de portadores de salvo-conduto para plantar e portar maconha em nosso país. A luta continua, porque o direito de poucos precisa ser o direito de todos”, escreveu ele em publicação nas suas redes sociais.
A Federação das Associações de Cannabis Terapêutica classificou a conquista de Sidarta Ribeiro, presidente de honra da entidade, como uma “vitória que é muito mais que pessoal: é coletiva, é histórica, é revolucionária”.
A entidade afirmou que compartilha do mesmo sonho do neurocientista: “um mundo onde o cultivo seja um direito, a cannabis seja reconhecida pelo que é – cura, cuidado, resistência – e onde cada semente plantada seja um ato de transformação”.
Ao comentar a decisão, Sidarta Ribeiro lembrou da decisão do STF de junho de 2024, que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. Por maioria de votos, os ministros decidiram que o porte de até 40 gramas de maconha é caracterizado como uso pessoal, diferenciando assim os usuários de traficantes.
“Prisão brasileira é quase sempre sinônimo de superlotação, violência psicológica e física, tortura e morte. Cada dia nessas condições é cruel. É urgente desencarcerar as dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas presas no Brasil pelo porte de até 40 gramas de maconha ou 6 plantas fêmeas. A cada dia sem liberdade para essa multidão de injustiçados, um pouco da nossa alma nacional morre. Liberdade já”, defendeu o neurocientista.
Na opinião do professor, o argumento de que a descriminalização da maconha favorece o tráfico, usado por aqueles que são contrários à proposta, “não para em pé”.
“É exatamente o contrário. Para combater o tráfico, a gente tem que descriminalizar e, além disso, legalizar a maconha. As pessoas que estão plantando em casa, elas verdadeiramente estão saindo de tudo aquilo que a gente chama de mercado e indo para uma questão terapêutica individual, doméstica”, comentou.
A cannabis veio para ficar
Em entrevista à revista Trip, publicada em novembro, Sidarta afirmou que “a maconha está para a medicina do século 21 assim como os antibióticos para o século 20”.
“A Cannabis não é só um remédio, é uma planta que pode ser muitos remédios diferentes. Diversas genéticas e modos de preparos permitem o uso de mais de 400 compostos de interesse terapêutico. A cannabis veio para ficar”, disse ele.
Sidarta também falou ao podcast “Pauta Pública”, no início de novembro, antes da conquista definitiva para cultivar a cannabis, sobre a descriminalização da maconha no Brasil. Ele disse considerar que o país “está muito atrasado” nesse tema em relação ao resto do mundo, “mas em movimento”.
Ele citou que, a partir de 2010, o movimento pela liberação da maconha cresceu em países como Estados Unidos, Canadá, Uruguai, em vários países da Europa e até em Israel.
“Então é um momento diferente. A guerra às drogas fracassou e o exemplo mais claro desse fracasso é justamente o da maconha”, analisou.
O professor acredita que as últimas descobertas científicas a respeito do uso terapêutico da maconha para várias doenças, como epilepsia, dores crônicas e esclerose múltipla, “está movendo a opinião pública no Brasil”, assim como moveu nos Estados Unidos.
Uma pesquisa divulgada em setembro de 2023 pelo Datafolha mostrou que 76% dos brasileiros aprovam o uso da maconha para fins medicinais. O mesmo levantamento, porém, apontou que 72% são contra o uso recreativo da planta.
Para Sidarta, a pesquisa revela uma “contradição”. A maioria contrária ao uso recreativo da cannabis, na opinião dele, “reflete o pânico moral em torno da maconha e também essa ideia de que o prazer não é legal”.
Planta ancestral
Sidarta ressaltou que a maconha “foi uma descoberta da medicina de um tempo ancestral” que começou a ser cultivada “há mais ou menos 12 mil anos”.
“Talvez tenha sido a primeira fonte de fibras vegetais, certamente uma fonte de alimento, e uma fonte de remédios. Então, certamente a gente está apenas redescobrindo e evidentemente detalhando, quimicamente e também fisiologicamente, uma tecnologia ancestral”, explicou.
O neurocientista ponderou que “nenhuma substância cura tudo” e alertou que “com a maconha não é diferente”.
“Ela (a maconha) não tem uma indicação para qualquer coisa. Ela tem muitos constituintes com propriedades diferentes, então dependendo da composição da flor, da canábis, que está sendo usada para fazer um óleo, por exemplo, os efeitos podem ser bastante diversos”, detalhou.
O neurocientista explicou que a maconha atua “num sistema que nós possuímos no próprio corpo, que é o sistema endocanabinoide”, através das moléculas canabinoides, dos flavonoides e dos terpenos – substâncias responsáveis pelo odor específico de cada espécie – contidos na cannabis.
“O sistema endocanabinoide está envolvido na regulação do sono, da alimentação, da resposta imune, da formação de memórias. Então, não é que seja uma panaceia, porque não existe, mas tem múltiplas indicações, porque lida com muitos aspectos diferentes do sistema. Então não é uma surpresa se a gente conhece a biologia da maconha”, declarou.
Fim da guerra às drogas
Sidarta Ribeiro refletiu que a pauta da legalização da maconha para uso terapêutico, pesar de muito importante, “só realmente resolve a vida da classe média e branca”, acrescentando que “a pauta que realmente interessa é a de parar a guerra às drogas”.
Ele disse que tinha “esperança” que essa pauta avance no governo do presidente Lula (PT), mas pontuou que isso “depende da sociedade civil”.
“A pauta da cannabis foi a única pauta progressista que avançou nos últimos sete anos, salvo engano, por causa desse alinhamento de vetores de muitos arcos diferentes da sociedade”, disse.
Para o professor, a guerra às drogas é uma “guerra às pessoas pretas, pardas, afrodescendentes, descendentes de indígenas, faveladas, periféricas, vulneráveis e sobretudo jovens”.
“Quase um terço da população carcerária brasileira tem a ver com a condenação por comércio de pequenas quantidades de drogas. No caso da população feminina, é mais do que a metade. Então, é uma coisa muito séria. O Brasil hoje é a terceira maior população carcerária do mundo: 800 mil pessoas que deviam, em sua maioria, estar na escola, na universidade, trabalhando, não ali naquelas condições degradantes que vão transformando a pessoa em um risco para todo mundo, porque qualquer pessoa naquele lugar tende a piorar. É isso que eu acho que é o centro fundamental dessa discussão”, declarou.
Ele afirmou, ainda, que é preciso olhar para as drogas como uma questão de saúde. “Fazer uso de drogas nunca foi um problema na espécie humana. O problema é o abuso, o uso problemático. Esse sim precisa de ajuda, precisa de suporte, precisa de acolhimento, precisa de ciência, medicina, tratamentos, terapêuticas, práticas integrativas, mas certamente não precisa de coerção, repressão, punição”, completou.