Vídeos espalhados por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) depois do 2º turno afirmam que urnas antigas, supostamente sem auditoria, dariam mais votos a Lula no 1º turno do que as novas. Seria um indício de fraude.
Os vídeos fazem referência a um relatório apócrifo de 70 páginas. O Blog teve acesso ao conteúdo completo do documento, mas opta por não divulgar porque há muitas imprecisões no texto.
O relatório foi divulgado em 4 de novembro de 2022 numa live pelo YouTube comandada pelo direitista argentino Fernando Cerimedo, ligado a Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Apesar de a live ter sido retirada do ar logo em seguida pelo YouTube, o conteúdo se espalhou pelas redes de apoiadores de Bolsonaro. É fácil fazer uma busca na internet e encontrar o vídeo e o relatório completos.
Lula venceu a eleição com 60,3 milhões de votos no 2º turno (50,9% dos válidos). Bolsonaro teve 58,2 milhões de votos (49,1%). Depois da vitória apertada, houve uma profusão de teorias da conspiração. O “relatório do argentino” é, por enquanto, a mais popular.
O Blog analisou detidamente o material divulgado pelo argentino Fernando Cerimedo. Foram refeitos os cálculos seguindo a orientação de estatísticos. A conclusão é a de que algumas afirmações estão erradas e outras não trazem prova nem indício sólido de irregularidades.
O relatório parte da falsa premissa (leia mais abaixo) de que as urnas de modelos antigos usadas nas eleições não foram testadas. Afirma, então, que esses equipamentos antigos computaram mais votos a Lula do que a Bolsonaro. Segundo o documento, isso seria injustificável.
Entenda, abaixo, o que dizem as teses em circulação na internet a partir desse documento e por que não há nelas indícios sólidos de irregularidades.
As urnas antigas registraram mais votos em Lula?
Sim. Há registro de mais votos para Lula nos equipamentos velhos em relação aos novos. No 1º turno (que é o período analisado pelo relatório), o Poder360 verificou que Lula teve 50,3% dos votos nas urnas antigas e 46% nas urnas novas. Isso, no entanto, não é indício de irregularidade.
Essa diferença nas votações seria estranha se os equipamentos antigos tivessem sido distribuídos aleatoriamente, de forma igual entre todas as cidades brasileiras. Mas não foram.
Na maioria dos Estados, as urnas novas foram alocadas, de maneira geral, em cidades próximas à capital. Isso foi feito para possibilitar um suporte mais rápido em caso de falha, afirmou o TRE-MG antes das eleições.
Já as urnas antigas ficaram concentradas em cidades menores ou de médio porte e longe de capitais. Ocorre que nessas cidades os candidatos do PT tradicionalmente se saem melhor do que nos demais municípios. Essa não é uma regra geral, pois depende do Estado e da região do país.
Também é necessário levar em conta que o PT é uma agremiação política criada em 1980. Tem funcionamento orgânico e atua de maneira vigorosa em todo o país. Apesar de ter problemas gerenciais conhecidos, é o partido político mais profissionalizado e com mais capilaridade no Brasil.
Nas cidades com menos de 10.000 habitantes, por exemplo, as urnas de modelos antigos eram 85% do total. Nas metrópoles com mais de 500 mil pessoas, eram só 31%.
A votação em candidatos a presidente do PT nesses municípios pequenos (em todos os tipos de urnas, velhas ou novas) esteve perto de 55% nas últimas 3 eleições. Já a votação em petistas nas cidades maiores esteve sempre abaixo de 49%.
Há diferença de voto em cidades de porte semelhante?
O documento apócrifo divulgado pelo argentino Fernando Cerimedo e depois propagado nas redes sociais omite a informação acima. Diz, porém, que comparou urnas antigas com novas só em municípios com menos de 100 mil pessoas (menos de 50.000 em alguns Estados).
Sustenta que, como a comparação é só em cidades pequenas, não haveria motivo para diferenças de votação entre urnas antigas e urnas novas.
Ocorre que mesmo entre os municípios pequenos mencionados há diferenças na distribuição de urnas (e de votos). Nas cidades com menos de 10.000 habitantes (tradicionalmente mais petistas que as demais), as urnas novas são 15% do total. Já nos municípios de 50.000 a 100 mil habitantes, são quase o dobro (28%).
Se fosse verdade que os modelos antigos são a causa de mais votos em Lula, como sugere o relatório, era de esperar que esse favorecimento a Lula ocorresse em qualquer cidade. Só que isso não acontece. O Blog fez 5 recortes populacionais distintos. Em 2 deles, as urnas antigas, de fato, registraram mais votos a Lula. Em 3 outros recortes, as urnas antigas registraram menos votos em Lula do que as urnas de modelos mais novos.
O quadro abaixo mostra de maneira clara que urnas mais velhas registraram menos votos em Lula em cidadezinhas bem pequenas e nas metrópoles.
De maneira geral, entretanto, como já registrado aqui acima nesse post, o petista tem votação expressiva em cidadezinhas (não importa se em urnas novas ou velhas).
A escolha do relatório por mostrar só um desses grupos de municípios faz parecer que há um padrão de favorecimento nos equipamentos antigos. Esse padrão desaparece quando são selecionados outros agrupamentos.
“Esse é o grande ponto. As urnas não foram distribuídas de forma aleatória. A maioria dos Estados reservou as urnas novas para a capital e cidades próximas da capital”, diz o cientista de dados Tiago Batalhão, 35 anos, doutor em física pela UFABC, que também analisou o relatório.
Batalhão usou os dados do TSE para verificar a distribuição das urnas. Constatou que os equipamentos mais antigos, além de estarem em cidades menores (como o Blog mostrou acima), se concentraram em cidades mais distantes da capital (onde o PT teve votação melhor nas últimas 3 eleições).
Mesmo numa análise dentro de algumas cidades, diz Batalhão, foi possível identificar que as urnas mais novas ficavam reservadas a bairros mais ricos enquanto as urnas antigas eram direcionadas a áreas mais periféricas.
O cientista de dados fez um mapa abaixo que mostra que o direcionamento das urnas antigas longe das capitais é especialmente verdade no Nordeste (área em que o relatório do argentino se concentra). Eis o mapa:
A distribuição de urnas novas (em azul) se concentrou em cidades da costa do Nordeste e perto das capitais, enquanto as urnas antigas (em vermelho), ficaram concentradas no interior
“O relatório do argentino destaca o Nordeste, uma região que dá vantagem consistente ao PT desde 2006 e é a única onde não houve um deslocamento significativo dos votos para candidaturas de centro ou direita. Só que quase 80% das urnas novas foram para as capitais e regiões metropolitanas. É imperativo verificar se há diferenças em todas as regiões e comparar com os resultados de eleições anteriores”, diz Örjan Olsén, 73 anos, diretor da consultoria Analítica.
Olsén analisou o documento e orientou o Blog no processo de verificação do relatório. “Não é a urna, há uma série de fatores que podem explicar melhor essa votações. O tamanho da população, a proximidade da capital e uma diferença regional forte a favor do PT no Nordeste são explicações mais plausíveis”, afirma o analista
Raphael Nishimura, 37 anos, pesquisador na Universidade de Michigan (EUA), também analisou o relatório e as conclusões do Blog. “A partir dessas novas informações [coletadas pela reportagem], não se pode dizer que a diferença mostrada no relatório se deve necessariamente ao modelo da urna. Existem mais evidências de que a variação dos votos é por conta do porte do município, já que há um histórico de anos anteriores de um mesmo comportamento nessas cidades”, afirma o estatístico.
Nishimura diz que o caso, aparentemente, é de correlação espúria. O termo na estatística se refere a grandezas que, embora caminhem juntas, não interferem entre si. Um exemplo clássico é a taxa de afogamento em piscinas. Ela sempre sobe na mesma medida em que sobe o consumo de sorvete. Só que isso, é claro, não significa que tomar sorvete provoca afogamento: ocorre é que ambos são mais frequentes quando é verão.
Os estatísticos afirmam que seria necessária uma análise mais sofisticada, incluindo fatores socioeconômicos, como população, distância das capitais, IDH ou renda para entender melhor o que poderia explicar a diferença de votos entre urnas antigas e novas.
O relatório do argentino sugere uma explicação extraordinária para isso: uma conspiração que driblou sistemas de segurança e implantou softwares diferentes. Só que faz isso sem antes se debruçar sobre explicações mais plausíveis e prováveis. Como o Blog mostra acima, há um histórico de votação semelhante em anos anteriores nas regiões que mais receberam as urnas antigas, algo que foi desconsiderado no relatório.
Há modelos de urna que não foram auditados?
Isso é falso. A live do argentino Fernando Cerimedo se concentra em dizer que as diferenças ocorrem em urnas não auditadas, o que é inverídico. O TSE listou em nota análises e testes de integridade aos quais os equipamentos foram submetidos.
“Circulou antes das eleições, inclusive, a informação falsa de que as urnas mais novas, as de 2020, não seriam auditadas. Mas isso também não é verdadeiro”, diz Ana Claudia Santano, 40 anos, coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil, ONG que coordena missões de observação eleitoral que ajudam a fiscalizar o processo.
“No último ciclo, a USP repetiu os testes que foram feitos em urnas passadas nas urnas de 2020 para garantir justamente que todas foram auditadas da mesma forma”, diz o professor Bruno Albertini, 42 anos, do departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP.
O teste aconteceu, inclusive, depois de pedido dos militares, diz Albertini, que é integrante da comissão de transparência e da missão de observação das eleições da USP.
A existência de urnas com 100% de votos a um candidato é indício de fraude?
O “relatório do argentino” também cita “centenas” de urnas em que houve zero voto a Bolsonaro. É falso que tenha havido centenas de urnas com esse tipo de resultado.
Como mostrou o Blog, Lula teve todos os votos válidos em 61 urnas no 1º turno e em 143 urnas no 2º turno. Isso é muito mais do que Bolsonaro (leia no infográfico abaixo), mas ainda assim um percentual infinitesimalmente pequeno perto do resultado geral da eleição.
O fato é que isso ocorre pelo menos desde 2014. Os candidatos do PT têm conquistado 100% dos votos em um número superior de urnas em relação aos adversários em todas as eleições presidenciais. Nos últimos 3 pleitos, 894 urnas registraram todos os votos válidos a um candidato a presidente. A maioria, nos candidatos a presidente do PT.
As urnas onde isso aconteceu em 2022 se concentram em seções com poucos votos em aldeias indígenas, presídios e comunidades quilombolas e em locais avessos às políticas do presidente Bolsonaro.
Em 2022, as urnas que deram 100% para Lula somaram 16.455 votos no 2º turno, o equivalente a 0,03% dos 60 milhões de votos recebidos pelo petista.
Não há indício de diferença de softwares
Os vídeos que circulam pela internet dizem haver “diferenças sutis entre os arquivos de log das urnas”, sugerindo que isso indicaria a existência de 2 softwares diferentes. Um deles, sugerem os vídeos, teria sido alterado para favorecer Lula.
O relatório do argentino mostra um log de urna com uma linha a mais dizendo se tratar de indício de que seja um software diferente.
O “log” (expressão que vem do inglês) é o registro das atividades da urna eletrônica, uma espécie de “diário” do que acontece no equipamento. É comum que um mesmo software possa registrar eventos diferentes em seu log dependendo do da interação com ele durante sua execução.
Por exemplo, quando a bateria da urna está baixa, há um alerta ao mesário, o que criará uma linha adicional no log –na lista de registros do que se passou dentro da urna.
Apesar de considerar a estranha hipótese levantada pelo “relatório do argentino”, o pesquisador Marcos Simplício, 39 anos, se juntou a outros professores da USP e da UFSCar para tentar produzir na urna o efeito identificado pelo documento. E conseguiu.
Os pesquisadores identificaram que a linha a mais no log citada pelo documento acontece durante o processo de carregar o software na urna. O que ocorre? No momento em que a urna está recebendo o programa, aparece uma mensagem para o operador perguntando se ele confirma o número da seção e da zona da urna que será carregada. Se ele apertar “corrige” em vez de “confirma”, uma linha a mais é criada no log.
O engenheiro Felipe Kenzo Shiraishi, mestrando da Politécnica da USP, gravou um vídeo mostrando o momento em que reproduziu numa urna exatamente o efeito mostrado pelo relatório. Assista abaixo [2min56seg]:
“Colocamos o mesmo código na urna, geramos os 2 logs diferentes. Conseguimos mapear quais as condições necessárias para dar um log ou outro”, diz Simplício, do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP.
Ou seja, o grupo de pesquisadores da USP e da UFSCar mostrou que a hipótese de que a diferença de log se deve a um software diferente rodando nas urnas antigas está errada. Eles escreveram um artigo contestando o relatório.
O efeito “triângulo” é esperado
Em outro ponto do relatório do argentino Fernando Cerimedo, ele sugere que existe uma “trava” na soma dos votos aos candidatos Lula e Bolsonaro.
O documento mostra um gráfico em que os votos de cada urna são representados por pontos de um eixo: na vertical a localização se refere ao total de votos em Lula e na horizontal, à soma de votos em Bolsonaro.
Diz, então que há uma linha reta “artificial”. E que esse “jamais seria um comportamento esperado”.
magem do relatório em que Fernando Cerimedo mostra “ângulo fixo máximo” nas urnas mais antigas (à direita) .
O comportamento, no entanto, é esperado, dizem os autores da análise da USP. O gráfico, na verdade, é uma consequência natural de haver um número máximo de eleitores aptos a votar em cada urna. Esse número máximo, para a maioria das seções, é de 300 a 400 eleitores. Isso é feito para evitar filas.
Como os eleitores brasileiros concentraram os votos em Lula e Bolsonaro, é completamente esperado que um gráfico como esse tenha uma linha reta, tanto nas urnas antigas como nas urnas novas.
O que explicaria, então, o triângulo não ser tão perfeito no gráfico das urnas novas?
Os pesquisadores da USP e da UFSCar mostram que há predominância de urnas novas em sessões que ultrapassam 400 votantes. Isso faz com que mais pontos apareçam na região superior e distorça o gráfico.
Relatório levantou hipótese implausível
O relatório distribuído largamente por apoiadores do presidente Bolsonaro nas redes sociais constata um fato que tem sido o mais propagado: existem urnas antigas em algumas cidades que registraram mais votos em Lula do que as urnas novas nesse grupo de municípios.
A sugestão de que houve manipulação das urnas, no entanto, implicaria uma conspiração com as seguintes características:
a) alguém ludibriou o sistema de proteção e lacre de urnas que envolve centenas de especialistas (ou contou com centenas de comparsas). Teria sido necessário possivelmente a cooptação de milhares de mesários em todas as seções nas quais a fraude teria sido cometida;
b) essa pessoa implantou nas urnas antigas, só nelas, softwares diferentes das urnas novas;
c) conseguiu driblar uma verificação por amostragem de no mínimo 3% das urnas com a participação de partidos políticos, OAB e Ministério Público;
d) esse mecanismo de favorecimento a um candidato por urnas antigas só funcionaria em cidades de faixas populacionais específicas (50.000 a 100 mil habitantes), mas não em outras (0 a 10.000 habitantes ou mais de 500 mil) e
e) apesar de todo esse esforço, o mecanismo garantiu apenas 1,8 ponto percentual a mais a Lula no resultado final da eleição mais apertada desde a redemocratização.